Educação em tempos de zap: pandemia expõe desigualdades sociais e limites do EAD 


Sem banda larga em casa, o estudante Thierri dos Santos Xavier depende do celular pré-pago para receber os conteúdos do 8ª ano da escola estadual São José, de Bossoroca, na região das Missões.

Pelo acesso à rede móvel, a família paga R$ 40 ao mês.

“É legal ter tarefas. Mas sinto falta do contato com os professores e colegas”, conta Thierri, que ainda precisa ajudar a irmã, Emylli, aluna do 6º ano.

“Como a mana não tem celular, sou eu que passo as informações do grupo pra ela”, comenta.


Desde a suspensão das atividades presenciais na rede estadual, educadores(as) e estudantes da rede pública têm participado de um experimento massivo de Ensino a Distância (EAD).

Um laboratório sem precedentes, que põe à prova a capacidade do modelo e evidencia a falta de estrutura, tecnologia e treinamento por parte do poder público, bem como as disparidades socioeconômicas que impossibilitam oferecer oportunidades iguais de aprendizado.

Conexão instável

Thierri não está sozinho. Dados do IBGE compilados pelo Dieese apontam que apenas 29,4% dos domicílios gaúchos possuíam computadores conectados à Internet em 2017, período de realização pesquisa.

Quase ¼ das residências (23,9%) não tinha qualquer acesso à Internet, mesmo por aparelhos celulares.

As condições desiguais não são uma exclusividade do interior. Fhayna Rutsatz, estudante do 3º ano da ETE Ernesto Dornelles, no extremo-sul da capital, relata: “muitas vezes tenho que aguardar até que o sinal fique bom para acessar as atividades.”


A falta de contato presencial também faz diferença. “Tenho um pouco de dificuldade. Procuro os colegas ou pesquiso na Internet antes de perguntar pro professor”, destaca.


Já Victória de Oliveira Mattevi é representante da sua turma de 3º ano da EEEM Irmão Guerini, de Caxias do Sul. A função lhe confere dupla responsabilidade. 

“Tenho que mandar as atividades para os colegas e manter contato com os professores caso alguém da turma tenha dúvidas”, explica Victória, que também relata sentir falta da presença dos educadores(as). “As aulas onlines acabam prejudicando um pouco o aprendizado”, constata.

A ausência dos mestres, a falta de uma plataforma e as carências tecnológicas e sociais transformaram mães e pais em tutores(as) da noite para o dia.



“Sempre ajudamos a Victória. Desde que a escola fechou esse é o nosso dever como pais”, contam André Pedro Bufon e Geise Oliveira, agricultores que não pararam de trabalhar com a pandemia.



Raylyne Ribeiro, colega de Victória na escola, também conta com o auxílio do pai, o mestre de obras Alemar Ribeiro.

“Eu precisei criar uma planilha para me organizar, com dias e horários de estudo. Coloco alarme para não me perder. O aprendizado é mais difícil. Além dos livros, vejo vídeos do youtube para ajudar a entender”



Incertezas

Com a prorrogação da suspensão das aulas presenciais pelo menos até o dia 30 de abril, educadores, estudantes e suas famílias se perguntam como será a continuidade do ano letivo.

Especialistas criticam o uso indiscriminado do EAD como solução para o período. “Não podemos banalizar e, ao mesmo tempo, precarizar o processo de ensino-aprendizagem na educação básica”, observa Arisa Araújo da Luz, pós-doutora em Educação focada na formação de professores e ex-reitora da UERGS.

Para ela, manter as atividades em EAD como forma de contato é uma iniciativa louvável, mas é preciso ter cuidado para não validar o método.

“Não há como produzir conteúdos de aulas e não há acesso universal. Comunidades com déficit financeiro e social ficam à margem. Outro ponto é como fixar tempo de estudos para crianças a distância, se até adultos escamoteiam essa responsabilidade no home-office” detalha.

Rosane Zan, diretora do Departamento de Educação do CPERS, reconhece a necessidade da ferramenta em meio à calamidade pública, mas alerta para as suas limitações.

“Vivemos uma excepcionalidade, em que o EAD é a única forma de ensino possível. Mas esse período não pode servir para acelerar a implementação da modalidade na rede estadual. A educação a distância pode ter papel complementar, mas jamais substituirá o trabalho presencial”, avalia.

Neste dia 1º, o presidente Jair Bolsonaro publicou Medida Provisória que suspende a obrigatoriedade de cumprimento dos 200 dias letivos, mas manteve a carga horária.

O CPERS continuará analisando e debatendo o tema ao longo de toda a quarenta, bem como alertando a categoria para possíveis ataques.

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