CPERS promove debate sobre EAD e os riscos da mercantilização do ensino em meio à pandemia


No Dia Mundial da Educação, o Departamento de Educação do CPERS promoveu um debate online com especialistas sobre o tema “EAD e os riscos da mercantilização do ensino em meio à pandemia”. A iniciativa integra a programação da 21ª Semana Nacional em Defesa e Promoção da Educação Pública, organizada pela CNTE.

O debate contou com a participação de Raquel Caetano, do IFSul Campus Sapucaia do Sul, Eucidio Arruda, professor da UFMG e Daniel Cara, professor da USP e foi mediado pela diretora do Departamento de Educação do Sindicato, Rosane Zan, a secretária-geral do CPERS, Candida Rossetto e o diretor Cássio Ritter.

A conversa foi dividida em três rodadas de perguntas. Na primeira, os convidados apresentaram o seu posicionamento quanto as implicações, desafios e disputas em relação a educação a distância no Brasil.

Para Daniel Cara, professor da USP e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação,  a experiência do Brasil com o EAD é diferente da de outros países, visto que aqui a iniciativa sofre interferência de interesses privados, como a Fundação Lemann, que é composta por pessoas que não conhecem as escolas públicas e que não possuem formação para liderar um processo de assessoria.

“A realidade que temos hoje é a de que esse espaço que está sendo dado às entidades empresariais para defender a educação a distância, essa colonização do debate educacional, nos diz que a EAD é muito mais um negócio do que a preocupação com os estudantes. Entidades empresariais como a Fundação Lemann, Todos pela Educação, Fundação Itaú Social seguem a linha da direita e colocam o direito a educação em segundo plano”, disse.

De acordo com o pesquisador, no país, em 2017, a educação básica abrangia cerca de 40 milhões de estudantes e era executada por mais de 2 milhões de professores, tendo o volume de recursos de R$ 272 bilhões de reais. Para ele, é esse o montante que o mundo empresarial quer disputar.

“Na educação básica, o processo de ensino e aprendizagem exige vínculo, o que se dá de forma presencial, entre alunos e professores e entre os educadores. Educação é uma obra coletiva, que exige um trabalho que compreenda as questões pedagógicas como principais”, afirma.

Segundo Daniel, o Conselho Nacional de Educação abriu um parecer de consulta pública, que mostrou que as propostas de EAD no Brasil são ineficazes. Elas são usadas como forma de proximidade com os alunos, mas não como aprendizado de fato.

“Em São Paulo, o secretário de educação, Rossieli Suares da Silva, decidiu fazer uma plataforma de EAD que já tinha estruturado no Amazonas e não deu certo, pois quer fazer com que os professores sejam substituídos por youtubers da educação. Secretários estaduais, fora o secretário do Rio Grande do Norte, todos embarcaram no EAD e estão fingindo que estão ensinando, mas os alunos não vão fingir que estão aprendendo. Ensino a Distância serve apenas como ferramenta de contato, não como estratégia de realização do ano letivo”, afirmou Daniel. 

Para o doutor em Educação, Eucidio Arruda, estamos em uma situação jamais vista, onde mais de 90% dos jovens estão fora da escola devido à pandemia do Covid-19 e sem previsão de retorno.

“O ineditismo da situação levou bilhões de crianças a ficarem em casa e tivemos que planejar como fazer o EAD como uma solução para tudo, mas não é. A maioria dos países está implementando a educação a distância de forma mais intensiva no ensino superior. Na educação básica é mais como um apoio”, disse.

Para Eucidio, a exceção é a Coreia do Sul, que estabeleceu o EAD como referência desde a pré-escola e não voltarão às aulas presenciais até que a pandemia seja plenamente solucionada.

“Temos visto uma pressão externa para a retomada das aulas, mas quando analisamos a dimensão dos riscos percebemos que é um grande perigo.  Além das crianças e jovens, é preciso lembrar que os professores, que são mais de 2 milhões na linha de frente, com idade media de 40 anos, também estarão expostos. Não podemos pensar em um retorno pelo menos nos próximos dois ou três meses”, afirma.

O professor, que atua na Universidade Federal de Minas Gerais, ressalta que, apesar das especifidades do momento, é preciso responsabilidade durante o processo de construção de conhecimento.

“O EAD não seria uma opção agora porque não discutimos e nem nos preparamos para isso. As discussões sobre tecnologias digitais não ocupam nem 1% no curso de preparação dos professores. Temos ainda um longo percurso para discutir esta questão, temos que aproveitar este momento para sermos pró-ativos e estarmos junto com os gestores e apresentarmos nossos posicionamentos para que possam servir de subsídios para construções futuras. O EAD não deve substituir a sala de aula”.

Para a doutora em Educação, Raquel Caetano, o Rio Grande do Sul já vem, há algum tempo, tentando trabalhar o EAD. Com o atual governo, o que se percebe é que a educação a distância vem realmente sendo privatizada. 

“A propriedade permanece pública, mas as ferramentas de gestão e do processo pedagógico estão sendo contratados. É uma operação de uma série de mecanismos da empresa dentro da escola pública, seja na questão da avaliação, das metodologias e na formação dos professores. É o oposto a ideia de gestão democrática que foi duramente construída ao longo dos anos”, afirma.

Na percepção de Raquel, o governo parece ter escolhido a educação como inimiga, trabalhando ideias de fazer uma revolução empreendedora, substituindo as regras do processo democrático e transformando os gestores em professores empreendedores, supervisionados através das tecnologias, e assim reduzindo, ao máximo, o papel do estado e fazendo a concepção do estado mínimo.

“Os professores do Rio Grande do Sul vivem em condições de total precariedade. Estão, entre outras situações, há mais de 50 meses sem receber e têm descontos indevidos da greve, o que tem como consequência uma situação calamitosa, de miserabilidade, que faz com dependam de doações para continuar sobrevivendo. E não podemos esquecer do desmonte da carreira, efetivado através do novo plano”, expõe.

Raquel ressalta que com a pandemia, os professores do estado se veem na obrigação de encaminharem atividades para os alunos através de plataformas ou material escrito, polígrafos, whatsapp. Mas para ela, é importante entender as realidades diversas do estado e dos diferentes níveis e modalidades da educação, como os quilombolas, os indígenas, as escolas do campo e verificar formas de atender todos os milhares de estudantes.

“O desmonte que temos observado nos últimos anos leva a educação no Rio Grande do Sul a uma situação de precariedade. Essa precariedade que constatamos nas escolas públicas, não é por acaso, é um projeto. Esse desmonte da educação é um projeto tanto do governo federal quanto do estadual. Com a pandemia isso fica ainda mais evidente”.

Outra questão levantada por Raquel é a de que nem todos os alunos têm os recursos necessários para o EAD. O que vai acontecer com estes alunos? Onde fica o direito deles a educação?

“As instituições privadas voltadas para a educação trazem um modelo que a gente muitas vezes não percebe, vão modificando modelos de gestão, práticas pedagógicas, a forma dos alunos aprenderem e a cultura escolar. Essa desvalorização do pensamento pedagógico, sem diálogo, sem a participação dos professores, dos sindicatos, acaba centralizando todos os processos para as empresas como a fundação”.

Confira abaixo a íntegra do debate:

Na segunda rodada de perguntas, os convidados responderam questões enviadas pela categoria.

Pergunta: Se a educação é uma obra coletiva e o ser humano é um ser social como se podemos conceber uma forma de ensino individual?

Daniel: Não faz sentido pensar na atividade de ensino como meramente individual.

A neurociência tem mostrado que a educação é um trabalho coletivo. Assim como o bebê, que precisa do apoio de outros seres humanos para viver, na educação também é necessário interação com outras pessoas para que a aprendizagem ocorra. Por mais que as pessoas ensinem, cada pessoa aprende de um jeito.

Esse novo discurso da aprendizagem que as empresas utilizam é falacioso, é mentiroso. Colocar professor e aluno como empreendedor é um projeto estritamente individualista.

A Emenda Constitucional 95, a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência estão totalmente articuladas. A Reforma do Ensino Médio nada mais é do que a política educacional que cabe abaixo do teto dos gastos públicos e que forma trabalhadores para atuar em um mercado que exclui direitos.

A grande venda do EAD como a solução para todos os problemas, defende uma educação que quer a substituição do professor. O aprendizado ocorre dentro de cada um, mas a interação com o professor e os colegas é essencial.

Entre todas as atividades profissionais, nenhuma é tão essencial e humana quanto à educação, porque ela é a área responsável por possibilitar o legado da humanidade entre alunos e professores.

Como diz Paulo freire a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.

Pergunta: Como ficam as comunidades carentes que não têm acesso a internet?

Eucidio: Hoje ficam sem qualquer apoio institucional e estatal. No Brasil cerca de 20% da população não tem acesso à rede móvel ou fixa. Quando se tem é no trabalho ou na casa de algum colega.

É preciso políticas públicas bem construídas para que ninguém fique de fora, ninguém fique para trás. Não nos é possível pensar numa educação pública de qualidade que desconsidere e exclua parte dos jovens.

Outro problema é em relação aos docentes. Há professores que têm acesso técnico a tecnologia, mas que em nenhum momento de sua formação discutiram a perspectiva de consumo de dados para transforma em conhecimento escolar.

Os alunos carentes estão simplesmente sem qualquer apoio do estado, que diz a eles que essa é a proposta e que depois, talvez, discutam com quem não conseguiu acompanhar. Infelizmente, muitos ficarão para trás.

Pergunta: Entre os planos que disputam o espaço público, qual consideras o mais nefasto para a categoria?

Raquel: Essa minuta do Conselho Nacional de educação alinhada com a OCDE vai tentando empurrar a educação para uma espécie de ensino híbrido. Vejo com preocupação.

Essa forma que a OCDE se pronuncia acaba colocando a responsabilização da educação no professor, dizendo que é ele que tem que ficar em conato com o aluno para não perder o vínculo.

Outro ponto que a OCDE diz também é que o custo do fracasso social no contexto da pandemia é dramático que as escolas de hoje serão a economia de amanhã. Ou seja, um discurso totalmente voltado para a valorização da economia e não da educação e da vida

Nós, professores, embora tenhamos uma preocupação sempre presente com os alunos, não podemos estar descolados do que está ocorrendo no mundo.

O que considero mais nefasto é a falta de discussão das políticas de educação com aqueles que fazem a educação no dia a dia, os professores, os alunos, os pais, a comunidade escolar e a acadêmica. Quando o estado contrata um programa desses e não discute com sua base, é um grande problema.

Pergunta: Como desenvolver a possibilidade de fortalecer a construção de argumentos dentro do contexto da escola pública para o contraponto com os empresários da educação a distância?

Eucidio: Eu fiz um trabalho em 2017 para o Conselho Nacional de Educação que serviu para trazer subsídios para a BNCC no que diz respeito à implementação de tecnologias na educação básica. Pesquisei na época os 35 países que integram a OCDE para ver como vinham discutindo as tecnologias. E foi interessante perceber que há um movimento entre esses países, de se pensar a formação tecnológica, mas diferente do que temos feito no Brasil. Aqui, as grandes políticas públicas buscavam instrumentalizar os professores. Então, é ter laboratórios de informática, é formar um professor para usar um software.

E o que essas políticas internacionais tem mostrado é que nós precisamos formar um sujeito para se posicionar criticamente frente a tecnologia, entender como ela é desenvolvida e produzida em diferentes contextos. Entender, por exemplo, quando se pensa em fake news, que um professor de História que a fonte histórica muda de formato na medida em que são produzidos trabalhos digitais. Mas o trabalho do professor para formar o sujeito que saiba criticar a fonte permanece. É preciso entender o processo de produção desta fonte e quais as implicações que tem para a nossa sociedade.

Trabalhar com tecnologias não significa que é preciso ser um expert na área. É entender as implicações dela para os diferentes campos do conhecimento. Esse movimento vai nos permitir, por exemplo, dialogar melhor com os nossos alunos e entender possibilidades, lacunas, acessos e faltas deles. Todos estes elementos são dados de extrema relevância que podemos levantar e consolidar para entender melhor em que diferentes pontos tecnológicos esta a escola pública brasileira.

Entender os processos de produção por meio das tecnologias digitais traz importantes subsídios para, ao receber uma proposta do governo, por exemplo, termos clareza das lacunas, limitações, pontos de resistência e contraproposta.

Precisamos aproveitar este discurso para tornar nossos alunos mais críticos e nós também. Temos que sentar a mesa com esses gestores e ter argumentos para contrapor. Seremos também demandados pela sociedade sobre quais são as nossas estratégias. Por isso o entendimento da tecnologia com o eixo integrador das nossas vidas é importante.

É necessário pensarmos nas dimensões coletivas dos usos, apropriações e posicionamentos.

O debate foi encerrado com um questionamento direcionado à todos os convidados sobre de que forma podemos fazer um contraponto ao governo que pouco ouve os educadores? De que forma poderemos fazer a retomada das aulas presenciais pós pandemia? Confira abaixo um resumo das respostas de cada convidado: 

Raquel: Neste momento precisamos dialogar com nossos colegas, estamos todos muito fragilizados diante desta pandemia. Precisamos estreitar laços com a nossa classe, conversando e fazendo discussões. Esse será o mote do nosso retorno. A educação é feita do diálogo, da participação e da discussão permanente.

Quanto ao debate tecnológico volto a dizer que é importante e que acabamos sendo empurrados a fazer. Temos muito a aprender em relação à tecnologia como um todo, mas não podemos ficar só ouvindo o discurso do fracasso da educação pública. Muito pelo contrário.

Daniel: Em relação a como voltar pós-isolamento social, a única certeza que nós temos e que se o retorno for feito a partir de negociações de cúpula, a realidade é que o chão da escola vai ficar prejudicado. Concretamente, a política de educação se realiza pelos profissionais da educação. E isso está sendo escanteado do debate educacional.

Então, neste momento é muito difícil fazer uma articulação com todos os professores, com todas as comunidades escolares para tomar as decisões, mas é preciso respeitar o que está escrito na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que existe autonomia pedagógica, e é preciso, ao máximo, compreender que em cada realidade de cada comunidade escolar as alternativas pedagógicas para o impacto gerado pela pandemia vão ter que ser construídas  pelo protagonismo dos professores e em respeito aos alunos e familiares.

Dizer que a EAD resolve o ano letivo não é verdade e serve a muitos interesses e a muitos negócios. Vivemos um momento em que é imprescindível colocar a educação na mão dos educadores. O retorno às aulas tem que ser muito forte, com o Sindicato, com gestores comprometidos, com conselhos estaduais e municipais de educação atuando fortemente para ter um retorno com respeito pedagógico.

Eucidio: Essa é uma situação inédita, o que pode nos levar a outras dimensões de atuação que podem ser tentadas. Sempre fico pensando no quanto a nossa profissão é desvalorizada e como temos dificuldades em mostrar para a sociedade essa desvalorização.

Fiquei imaginando o quanto a docência passa a ser uma preocupação de muitos dos pais que agora, devido à pandemia, estão com as crianças em casa. E do quanto que a dificuldade de ser docente tem sido percebida pelas pessoas.

Estamos em um momento em que podemos aproveitar essas tecnologias e reativar a conversa com os pais. Vamos nos aproximar da comunidade escolar e discutir, num momento de pandemia a importância da escola, o quanto que ela faz falta como local de socialização, de produção de conhecimento. Vamos discutir o quanto essa escola vai trazer uma série de elementos positivos para a formação dos jovens.

Esse momento pode ser uma fagulha para uma perspectiva de valorização docente que muitos de nós nunca conheceram. Muito da valorização de algumas categorias se relaciona com como a sociedade a vê ou como entende seu trabalho. Os pais agora estão entendendo melhor o nosso trabalho. Temos que aproveitar este momento e dialogar com eles, construir juntos oportunidades que fortaleçam a educação.

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