Eduardo Silveira de Menezes
Os parlamentares proponentes dos projetos de lei embasados no Programa Escola “sem Partido” – leia-se: Escola de um só partido – estão perdidos no tempo. Utilizam conceitos e ideias de outra época para analisar os fatos do presente. Afinal, nos dias de hoje, os alunos estão longe de representar o “elo mais fraco” do processo de ensino-aprendizagem. Suas mentes não são como recipientes vazios, nos quais os docentes apenas “despejam” uma determinada visão de mundo. O papel do professor, aliás, é semelhante ao de quem ocupa um cargo eletivo. Ambos devem “prestar contas” aos seus respectivos “públicos”. Nessas ocasiões, a honestidade – intelectual ou política – será sempre a forma mais ética de tratar com o interlocutor.
Não há nada mais ideológico do que usar de maniqueísmo para angariar adeptos a uma causa. Caminhamos para o final do segundo decênio do século XXI, mas, de modo a mascarar a realidade, os partidários da Escola “sem Partido” tentam fazer crer que vivemos num contexto semelhante ao da Guerra Fria. Eles sabem muito bem que o “socialismo real” padeceu, no final dos anos 80 e início dos 90, com a queda do muro de Berlim e o fim da experiência posta em prática pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mas atribuem aos nossos tempos fenômenos de outrora.
A verdade é que, nas últimas décadas, os “ideais socialistas” foram paulatinamente sendo absorvidos pela cultura capitalista. Tenta-se a todo custo transformar suas principais referências, inclusive na América Latina, em mercadorias. Camisas estampadas com o rosto de Che Guevara são vendidas pela Walmart ao preço de R$ 49,90. Pelo mesmo valor, a multinacional estadunidense oferta o livro Diário de um Combatente, de autoria do guerrilheiro argentino. Caso o consumidor prefira economizar, é possível optar pela compra de um abridor de garrafas com a mesma imagem da camisa. O preço? “Apenas” R$ 31,90 – anuncia a publicidade.
Quem pode desembolsar um pouco mais, tem a oportunidade de adquirir, mediante o pagamento de R$ 75,15, uma caricatura em resina do líder da Revolução Cubana. Todos os produtos podem ser comprados sem sair de casa, entre um gole e outro de coca-cola e uma mordida num lanche do McDonald’s. Uma realidade bem diferente daquela idealizada pelos entusiastas da Escola “sem Partido”.
Em um cenário como esse, os estudantes, de modo geral, não estão interessados em compreender conceitos como “mais valia” e “luta de classes”. Não costumam refletir sobre as recorrentes ameaças aos direitos trabalhistas e a evidente divisão social que afeta o país. Suas preocupações gravitam em torno de padrões próprios da sociedade da informação. Antigas ferramentas de aprendizagem foram substituídas. Caneta e papel estão caindo em desuso. Os livros, gradativamente, migram para as plataformas digitais. A apropriação dos recursos tecnológicos é tão comum que se dá até mesmo em locais periféricos. Os conteúdos de sala de aula são registrados por câmeras acopladas aos celulares. Qualquer situação que possa ser tomada como desrespeitosa, sobretudo, na relação aluno-professor, rapidamente torna-se pública nas redes sociais.
Cai por terra, assim, o defasado argumento de que os estudantes formariam “uma audiência cativa” e estariam “assujeitados aos docentes”. Passa longe disso. O assujeitamento real se dá ao modo de vida próprio do capitalismo contemporâneo. O Estado não é – nem nunca foi – neutro, a escola tampouco. O importante é aprender a conviver com as diferenças. Quem usa de uma posição privilegiada para tirar proveito – seja no Congresso ou em sala de aula – deve responder pelos seus atos e já existem meios legais para tanto.
Em julho, um dos projetos baseados na Escola “sem Partido” – de autoria do pastor e senador, Magno Malta (PR-ES) – passou por uma consulta pública no site do Senado Federal. O texto – que propõe a inclusão dos princípios desse programa entre as diretrizes e bases da educação – acabou rechaçado por uma diferença de aproximadamente 10 mil votos. Não foi possível esconder o viés político-ideológico da proposta. Basta ver os argumentos de quem se posicionou contrário ou favorável. Todos têm lado. Não é diferente com o Estado. Ao ser incorporado por agentes políticos, essa entidade abstrata acaba por repercutir os princípios do grupo com maior poder de lobby nas casas legislativas.
A política institucional brasileira está completamente viciada. Pouco importa se os parlamentares possuem conhecimento aprofundado sobre o objeto de suas proposições. As contradições dos projetos de lei embasados nesse movimento esdrúxulo ilustram bem esse processo. Apenas quem desconhece a prática do ensino, no país, pode propor o “direito dos pais de que seus filhos recebam educação religiosa e moral de acordo com suas próprias convicções”. Nem todos os alunos vivem em ambientes que podem ser considerados propícios para uma boa “orientação moral”. O mundo não é perfeito. As famílias não são perfeitas. As mais diversas religiões costumam cometer falhas. Não é possível assegurar a formação de cidadãos conscientes de seus direitos e deveres sem considerarmos que muitos estudantes da rede pública encontram-se em situação de vulnerabilidade social.
Crises políticas, econômicas e institucionais não devem servir de justificativa para a imposição de uma só ideologia em sala de aula. As diferentes visões de mundo devem ser expostas com clareza, sem proselitismo ou qualquer tipo de malabarismo jurídico. Negar que a ideologia é constitutiva de todo e qualquer sujeito – seja ele presidente, deputado, senador, professor, pai, mãe ou estudante – é, por si só, assumir uma posição ideológica.