Da Judicialização da política e das políticas públicas à partidarização ativa do poder judiciário


Carta Maior/ Francisco Fonseca

O PODER JUDICIÁRIO COMO PARTIDO POLÍTICO
Um dos principais pensadores da política que intitulamos como “moderna”, Antonio Gramsci a analisou em seus diversos significados, em suas formas de operar, em sua complexidade quanto à representação e em seu papel tanto nas conjunturas como nas estruturas de poder. Observou, argutamente, que certas instituições políticas sediadas na chamada “sociedade civil” por vezes fariam a função e o papel dos partidos políticos formais como “intelectuais orgânicos” de determinadas classes ou frações de classes sociais.  Deve-se notar que, para Gramsci, o Estado é “ampliado”, no sentido de articulação entre os aparatos do Estado – como o Poder Judiciário, por exemplo – e as organizações da “sociedade civil”.
Dessa forma, em determinadas conjunturas, notadamente naquelas em que os representantes tradicionais e oficiais das classes e/ou frações se encontram em crise de representação e de hegemonia – no sentido mais profundo dessas expressões –, outras entidades, formais ou informais, na sociedade ou mesmo de setores do Estado, assumem o papel de “organização da sociedade” e de “direção político/ideológica”, notavelmente de grupos específicos, como foi o caso da maçonaria na Itália na década de 1930. No contexto de desestabilização política e criação de um “Estado de Exceção”, como se está observando no Brasil, o papel do Poder judiciário torna-se ainda mais crucial, como veremos nesta seção.
No Brasil, a chamada “judicialização da política” (que inclui políticas públicos e os mais diversos conflitos, incluindo-se os havidos entre os poderes) vicejou desde a Constituição de 1988 com efeitos controversos. O Poder Judiciário vem, desde então, ampliando seus poderes, competências e privilégios, mantendo, além do mais, os que detinha antes da redemocratização. Tem sido um proto partido, um ensaio de “partido político” no sentido de cumprir essa função embora seja instituição do Estado.
Contudo, desde a desestabilização do Governo Dilma, que começou em 2013 e levou à sua deposição sob a forma do golpe Parlamentar/Midiático/judiciário, finalmente desfechado em 31 de agosto de 2016, analisado acima, o Poder Judiciário, notadamente suas mais altas cortes, tem ido muito além da conhecida “judicialização da política”.
Desde então, o Poder Judiciário vem se transformando em verdadeiro partido político no sentido de dar direção político/ideológica/moral ao conservadorismo – em suas diversas acepções – e aos grupos de direita, em suas diversas tonalidades. Superou, portanto, em muito o conhecido processo de “judicialização da política” no sentido  reativo a demandas contenciosas. A aliança com a grande mídia é, nesse sentido, crucial ao êxito do golpismo.
Agora, o Partido do Poder Judiciário – PPJ na linguagem partidária – e seus subprodutos, entre os quais o mais famoso, o PLJ (Partido da Lava Jato), coligados ao conhecido PIG – Partido da Imprensa Golpista –, reitere-se, a setores empresarias, notadamente o rentismo e interesses estrangeiros, e às classes médias tradicionais (historicamente conservadoras) intercedem na vida política a ponto de expressarem, em certo sentido, o cerne da vida política. Mas, reitere-se, como porta-vozes e “organizadores político/ideológicos” de interesses estrangeiros, do Capital Global, do rentismo, e das classes médias conservadoras. Em última instância, o “Partido do Judiciário” requer re-colocar a sociedade brasileira em patamares sociais hierárquicos cujo elemento fundante é a distinção social, a ideia conservadora de “ordem” e a meritocracia individualista. Daí tanto a participação ativa de setores do Judiciário na elaboração do golpe de Estado como de sua “legalização”: TCU, MPF e MPEs, STF. Igualmente, aparatos de Estado, como a PF e a RFB, tornaram-se fortemente instrumentalizados.
Logo, a fragilidade dos partidos políticos – em sentido estrito –, como o PSDB, o DEM e o PPS, sem contar o imenso “centrão”, todos golpistas de primeira hora e decadentes no jogo político/eleitoral antes das perseguições da Lava Jato, tem como contrapartida a força do Poder Judiciário como expressão dos grupos sociais subrepresentados por aqueles partidos políticos “sem voto” e perdedores de eleições, caso notório do PSDB.
Um “novo/velho” Brasil está sendo moldado desde 12/05/2016 (afastamento temporário da presidente legítima, Dilma Rousseff) e sobretudo desde 31/08/2016, quando o impeachment fora desfechado. Com ele estão sendo desestruturados: o pacto político formulado pela redemocratização que resultou na Constituição de 1988; o Estado de Direito Democrático; o Estado de Bem-Estar Social; os direitos trabalhistas; a soberania nacional; os direitos civis, notadamente das minorias; entre outros.
A todos esses ataques, o discurso – também “novo/velho” – se funda na “modernização”, na “abertura do mercado”, no “custo Brasil”, na “meritocracia”, na “estática divisão internacional do trabalho”, de onde Moro e Serra, por exemplo, parecem se inspirar, entre outras.
O “Partido do Poder Judiciário” tem sido ou omisso, ou leniente ou ativo no ataque a esse conjunto de garantias, a ponto de a defesa do ex-presidente Lula ter conseguido aceitação da ONU quanto ao processo que lhe é movido pela Operação Lava Jato, cujos elementos anti-jurídicos saltam aos olhos, simbolizados na figura do promotor Dalton Dallagnol com suas convicções em forma de power points!
Esse “partido” tem ou realizado (Partido da Lava Jato, TCU, MPEs) ou permitido (STF) um sem-número de aberrações ilegais contra determinados políticos de um mesmo partido político (o PT), como se sabe, e parcialmente ao PMDB. Muito já se falou dos grampos ilegais e dos vazamentos aos meios de comunicação (ao PIG), das conduções coercitivas, das prisões ilegais e estendidas como forma de pressão, das pressões inconstitucionais às delações premiadas, da supressão do devido processo legal, da intepretação do processo penal e do código do processo penal de forma inteiramente “particular” sem que nada disso tivesse o devido “peso e contrapeso” do que se pode chamar de justiça. Tudo isso no contexto da enorme seletiva investigativa.
Não mais se discute política no Brasil sem que haja menções explícitas e predominantes a Moro, Mendes, Janot e outros. A morte do ministro Teori Zavascki tem permitido um sem-número de versões sobre um possível atentado tendo em vista a conveniência política para o consórcio golpista indicar seu substituto (como relator da Lava Jato num momento de homologação de importantíssimas delações premiadas) e que faça coro a Gilmar Mendes para criminalizar políticos do PT e de parte do PMDB, sem que nada aconteça ao PSDB e ao núcleo golpista do PMDB, cujos principais nomes estão envolvidos até a medula em denúncias e delações.
O Poder Judiciário, ao se partidarizar, com honrosas exceções não julga o “mérito” do processo e sim personaliza o suposto criminoso: uns sim (do PT), outros não (do PSDB)! Tal fenômeno se tornou chacota entre diversos grupos, ainda mais com a “piada pronta” dos reiterados encontros entre Moro/Gilmar e Aécio, Alckmin, Temer, Dória e tantos outros, num teatro em que se encontram acusadores e acusados, cujos papeis se confundem.
Mesmo os Ministérios Públicos estaduais têm agido de forma facciosa, partidária, caso do MPSP, que blinda os sucessivos governos do PSDB do estado de um sem-número de barbaridades: intransparência sistêmica; corrupção, como se verifica nos casos Alstom, quebra de consórcios que construiriam linhas de metrô, merenda escolar, entre tantos e tantos outros; violência policial exacerbada e coordenada politicamente; irresponsabilidade administrativa (caso da crise hídrica e da “reorganização” das escolas estaduais); aparelhamento político/partidário dos aparatos do Estado; privatizações, concessões e contratualizações onerosas à sociedade e irresponsáveis administrativamente; entre muitos outros. Tudo isso tornou o estado de São Paulo sob o PSDB o estado mais autoritário, intransparente e incompetente para resolver problemas estruturais, inversamente à proteção e blindagem do TJ, do MPSP e mais recentemente até da Defensoria Pública de SP. Por outro lado, a perseguição de promotores paulistas a Lula é ao mesmo tempo insana e típica de ópera bufa, contrariamente à intocabilidade dos governos tucanos, apesar do imensos descalabros que promovem há cerca de vinte anos no estado de São Paulo. Igualmente o MPDF, entre outros, tem assumido postura anti-petista e particularmente persecutória a Lula a ponto de indiciá-lo sem nenhuma evidência. São, portanto, seções regionais do PPJ, espécie de partidos regionais da Velha República.
O PPJ não tem voto nem legitimidade para fazer política, mas age como se tivesse, tendo, ainda por cima, mantido vícios e privilégios provenientes da ditatura militar, reitere-se.
O PPJ se protege com o argumento de que “apenas cumpre a lei” – bordão de Moro, candidatíssimo à presidência da República –, quando a interpreta ao seu bel prazer e de acordo com as circunstâncias políticas, conjugando ações da Lava Jato com o STF, a PGR e Ministérios Públicos estaduais, embora haja conflitos e dissintonias também entre essas instituições, igualmente ao que ocorre nos partidos políticos formais. Reitere-se que a aceitação da ONU à queixa de perseguição ao ex-presidente Lula pela Lava Jato, particularmente a Moro, justamente evidencia esse manancial de ilegalidades.
Por fim, o apontado “messianismo” de Moro (que aparentemente colabora com o Poder Judiciário dos EUA), Dallagnol e outros membros da Lava Jato, que supostamente estariam numa cruzada cívica contra a corrupção, pode ser até verdadeira do ponto de vista de suas crenças individuais, embora altamente questionável dada a seletividade com que atuam. Contudo, o mais importante é observar os aspectos sistêmicos do que está em jogo no Brasil por meio da atuação política do Poder Judiciário como “partido político” no sentido gramsciano.
Sem que se enfrente e se desestruture o poder faccioso desse “partido político”, impondo-lhe conduta republicana, transparente e democrática, estaremos muito próximos de uma “ditadura judicial”, tornando o Estado de Exceção, que de certa forma já estamos vivenciando, moldura da vida política nacional.
Enfatize-se que os debates e embates em torno da morte e sucessão de Teori Zavascki são a expressão da partidarização do Poder Judiciário e do sintoma da destruição da democracia, da soberania e da sociedade de direitos, uma vez que o golpe de Estado foi desfechado para blindar as elites e os grupos conservadores e para destruir a soberania nacional – em prol do rentismo internacional – e a sociedade de direitos: políticos e sociais.
Não é pouco a tarefa que a atual geração terá de enfrentar!

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O atual quadro político brasileiro expressa tanto a quebra da ordem constitucional democrática – representada pela Constituição de 1988 – como a imposição de uma agenda econômica derrotada nas quatro últimas eleições. Expressa portanto um duplo golpe: do modus operandi do jogo político institucional e do conteúdo das políticas, uma vez que não saído das urnas.
A desestabilização política, para além dos vetores internacionais, implicou a articulação das elites em detrimento da concepção de soberania nacional e da igualdade social. Para tanto, contou com agrupamentos políticos altamente mobilizados nos três poderes da República.
O “Estado de Exceção” que vigora no país desde 12 de maio de 2016, quando o “governo” provisório golpista se instala no Poder, se perpetua a cada dia: nomeação com objetivos descaradamente políticos/partidários de Alexandre de Moraes ao STF; permanência do modus operandi militantemente faccioso das instituições judiciais, notadamente a Operação Lava Jato, o STF, a PGR, e seções do MP em alguns estados;  manutenção de prisões arbitrárias e todo tipo de transgressão à Constituição, ao Direito Pena e ao Código do Processo Penal levado a cabo particularmente pela Operação Lava Jato com a vigorosa leniência do STF;  violência policial às manifestações sociais da oposição e a perseguição crescente a militantes políticos de esquerda e a movimentos sociais; crescente fechamento institucional às insatisfações; derrogação de direitos sociais sem ampla negociação, uma vez que as decisões são circunscritas à maioria parlamentar conservadora e neoliberal, cujas ações voltam-se exclusivamente a transferir renda dos pobres aos ricos, derrogando-lhes direitos históricos nas diversas áreas sociais; desconexão, quase total, entre Governo e Sociedade, entendendo-se, esta, os amplos grupos descontentes seja com a forma como o “governo” Temer tomou o poder, seja com o conteúdo desnacionalizante, antipopular, antissocial e desestruturante de direitos das políticas adotadas; descrença nas instituições e no processo eleitoral e partidário; percepção generalizada de “imoralidade pública”; permanência da brutal manipulação dos processos políticos pela grande mídia, que narra a realidade à luz de interesses antipopulares/antissociais, portanto facciosos e elitistas.
O desfecho desses processos e seu efeitos ainda são desconhecidos, uma vez que há diversas questões chave a serem respondidas: o grau de transparência/manipulação das delações da Odebrecht; o comportamento do Poder Judiciário perante tais delações (Operação Lava Jato, PGR, STF, MPF etc); o impacto das delações ao núcleo do “governo Temer” e ao PSDB; as fratura intestinas do consórcio golpista; o fator Lula e sua capacidade, ou não, de agregação política; a capacidade de mobilização da sociedade politicamente organizada – o fator “rua” –, cuja amostra positiva ocorreu no dia 15 de março, em que parte significativa dos brasileiros foram às ruas se manifestar; o comportamento da economia, que tudo indica permanecerá em recessão; os limites da impopularidade e da derrogação de direitos pelo “governo” Temer; a repercussão internacional que a perseguição política a Lula e ao PT tem acarretado, no contexto do golpe de Estado, nas instâncias internacionais; os efeitos internacionais ao Brasil decorrentes do governo Trump; entre outros.
São muitas perguntas e a única certeza é que as elites golpistas tudo farão para se protegerem, uma vez que contam para tanto com atores poderosos nos três poderes, na mídia, em entidades empresariais e outras esferas.
Somente a mobilização popular – como se viu na ocupação do MTST na avenida Paulista e nos inúmeros protestos e movimentações sociais e populares – poderá reverter esse quadro, em consonância com as fissuras no consórcio golpista e nas instituições. Estas, contudo, somente atuarão de forma “justa” se houver pressão política das mais variadas naturezas.
A retomada da democracia política e social tem, portanto, um dificílimo caminho a trilhar. Contudo, como nos ensinou Maquiavel, a realidade só poderá ser alterada quando se é realista para compreendê-la…com vistas a alterá-la. A própria fluidez e complexidade da conjuntura nos obriga a ter cautela em sua compreensão, mas certamente a mobilização popular em torno do resgate da ordem constitucional democrática e dos direitos sociais são os elementos cruciais desse beco que se quer ter saída no Brasil contemporâneo!

 

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