Editorial Dois Brasis, dois Projetos de Educação
Entre os livros que pretenderam descrever a sociedade brasileira, ficou muito conhecido o do cientista social francês Jacques Lambert: “Os Dois Brasis”. Escrito nos anos 1950, na arrancada do desenvolvimento industrial, ele contrapôs ao Brasil rural o Brasil das grandes cidades que haviam assimilado as tecnologias então modernas. Celebrava o “triunfo” do crescimento de São Paulo, que comemorava, em 1954, 400 anos de fundação e a excelência de sua já famosa USP, a universidade pública de São Paulo.
Naquela visão, a educação escolar teria a função de transportar as futuras gerações do Brasil tradicional para o Brasil Moderno. O passar das seis décadas, de Juscelino a Lula, mostrou que essa tarefa da escola pública era uma “missão impossível”. Por quê? Pelo simples fato de que não haveria vaga para todos, nem nos empregos, nem nas escolas. Daí ter-se desenvolvido, aos poucos, um novo dualismo, agora na educação básica: os estudantes do ensino médio das classes alta e média passaram a frequentar eficientes escolas privadas (reforçadas, inclusive, por cursinhos pré-vestibulares), para vencer os processos seletivos dos melhores cursos superiores; e para o crescente número de alunos e alunas das classes populares os governadores de todos os estados construíram e equiparam milhares de “salas de aula” em escolas públicas e gratuitas, povoadas por professores cada vez mais mal pagos e despreparados, cultural e pedagogicamente.
A esse dualismo seletivo perverso se opuseram intelectuais como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e Florestan Fernandes, bem como os educadores sindicalistas da Confederação dos Professores do Brasil (CPB) e das associações do magistério público – que fizeram greves para conter o arrocho salarial e denunciaram as políticas públicas de desqualificação das escolas estaduais e municipais. A transformação da CPB em CNTE, a Lei do Piso Salarial dos Professores, a Lei de Cotas que destina 50% das vagas das universidades, por turno e curso, para estudantes oriundos das escolas públicas, negros e indígenas, bem como o Plano Nacional de Educação, a expansão de vagas gratuitas nas universidades, a Gestão Democrática, as políticas de alimentação e transporte escolar para toda a educação básica, obrigatória de 4 a 17 anos, a inclusão dos deficientes e a não-discriminação dos(as) LGBT, tentam substituir o elitismo e a seletividade da educação pelos critérios universais e democráticos que garantem sua qualidade social.
Nesta hora de retrocessos, precisamos unificar as políticas e projetos de educação e substituir a visão dos dois Brasis pelo enfrentamento de nosso processo histórico, de escravização de indígenas e africanos pelas culturas ocidentais, rumo a um novo Brasil, emancipado e unificado pelas lutas de seu povo. Essa tarefa é, sobretudo, dos profissionais da educação pública, básica e superior. Vamos nessa?
Curtas
1.Greve Geral O 28 de abril passado certamente foi um dia fora do “normal”. Não dá para se fazer um balanço objetivo da extensão e da qualidade, tanto das paralisações quanto das atividades que responderam ao apelo à Greve, em que se destacaram os trabalhadores da educação. Mas uma coisa ficou patente: mesmo no capitalismo, o trabalho é o mais importante e decisivo fator da produção e do desenvolvimento econômico. É como na escola: o professor é importante, mas os estudantes são essenciais. Sem estudantes não existem escola e professor; sem trabalhadores, mesmo com muito capital e investimento, a economia não roda. Falta também avaliar que medo foi maior: o dos empresários, diante da força dos sindicatos; ou dos trabalhadores, diante do desemprego e da polícia. A História do Brasil, cuja primeira greve geral foi em 1917, nos ajuda a preparar a próxima: as greves são a afirmação da classe trabalhadora!
2- Dia do Trabalho ou do(a) Trabalhador(a)? Tivemos três feriados nas últimas semanas: a Sexta Feira Santa, o Dia do Herói Tiradentes e o Dia do Trabalho. Um religioso, um cívico nacional e outro cívico mundial. Dia feriado quase nada significa para os pequenos e os idosos – que ainda não trabalham ou que trabalharam demais… Mas é quase sinônimo de “gostinho de felicidade” para a maioria de todos nós. Contudo, há uma dúvida no ar: o 1º de Maio é Dia do Trabalho ou Dia dos(as) Trabalhadores(as)? Talvez daqui a dez anos, muitos poderão dizer: “bons tempos, antes de 2017, quando havia o que se comemorar…” Está em nossas mãos e em nossas escolhas o futuro não só do Brasil, como de nossos filhos e netos. Abramos os olhos e sejamos vigilantes!
3 – Treze de maio está chegando É bom saber. No dia 13 de maio de 1888 não havia mais que um milhão e oitocentos mil escravos(as) no Brasil. A maioria dos que trabalhavam no campo e na cidade já era de homens e mulheres “livres” – que a Lei não considerava propriedade de ninguém. Mas, como demorou a raiar este dia! Soltos de suas senzalas e de seus mocambos, muitos ficaram “ao léu”, porque não tinham dinheiro no bolso e muito menos terra para trabalhar livremente. Foram condenados a ser mendigos, posseiros, a um passo da criminalidade. Enquanto isso, imigrantes europeus ganhavam terras e ferramentas do pai da Princesa Isabel. A história registra casos de escravos que voltaram a trabalhar de graça nas fazendas de seus donos. O desemprego dos humildes é coisa antiga. Mesmo assim, comemoramos – brancos e negros – a Abolição da Escravatura. É hora de digerir nossas heranças duvidosas e superar enganos e outras feridas seculares. Não à “Reforma” Trabalhista!
4 – Índios mais presentes em Brasília Há mais de 30 anos, o índio xavante Juruna foi eleito deputado federal, pelo Partido Democrático Trabalhista, na mesma eleição que consagrou Leonel Brizola Governador do Rio de Janeiro. Juruna e seu gravador eram atrações no Congresso e promessa de novos tempos na Ditadura que agonizava. Agora os índios voltam a Brasília, com cocares e tacapes, para reivindicar direitos e afirmar sua identidade: depois de quase dizimados no Brasil (400 mil em 1991) passaram a ser um milhão em 2016. Dá para entender esta mensagem demográfica? Ou só vale para a Reforma da Previdência?
Merenda escolar: direito no Brasil, comércio nos Estados Unidos
Uma das políticas públicas de maior sucesso e eficácia no Brasil é a da merenda escolar, hoje gratuita e universal para todos os estudantes da educação básica, inclusive para os que frequentam a modalidade de jovens e adultos. Nascida no final da II Guerra Mundial, para dar destino a milhares de toneladas de leite em pó e outros alimentos que iriam fartar os soldados na Europa e lotavam um navio norte americano, em escala no Brasil, a distribuição da merenda para as crianças e adolescentes se consolidou como dever de Estado e direito dos(as) estudantes, chegando ao texto constitucional.
Eu mesmo, como estudante do curso primário e secundário público em Campinas, entre 1951 e 1957, vivi essa transição, quando só os alunos pobres recebiam merenda gratuita. Hoje, mais de 400 mil merendeiras garantem os momentos mais deliciosos da jornada escolar de mais de 40 milhões de estudantes. Para sua formação profissional, são oferecidos cursos de nível médio de 1.500 horas, que as transformam em “Técnicas em Alimentação Escolar”. Logo, logo os Institutos Federais de Educação e as Universidades Públicas estar-lhes-ão ofertando os Cursos Superiores de Tecnologia em Educação e em Processos de Trabalho na Alimentação Escolar, já regulamentados pelo Conselho Nacional de Educação, com a colaboração dos(as) nutricionistas já presentes nos sistemas estaduais e municipais de ensino.
Está na moda há quase um século citarmos os Estados Unidos da América como o país no qual nos devemos espelhar. Como funciona a alimentação escolar por lá, onde as aulas começam às oito da manhã e terminam às quatro da tarde?
Chega-nos agora pela internet a notícia chocante de uma prática nos Estados do Colorado e Alabama – onde estudei em 1966 – que vigorou também no Estado do Novo México e foi abolida no início do último abril por um senador latino, Michael Padilla. Como os lanches, incluído o almoço, não são gratuitos, mas vendidos por uma cantina que fornece crédito mensal aos estudantes, prosperou um costume odioso: as crianças das famílias em dívida recebiam um carimbo no braço com o aviso iminente da quebra da alimentação. Isso acabou. Casos ainda mais humilhantes, porém, como repartir lanches frios aos devedores e lanches quentes aos filhos das famílias com pagamento em dia, acabam mostrando o lado perverso do capitalismo liberal americano.
É moda recente no Brasil criminalizar políticas públicas que dão prejuízo. A Reforma da Previdência, por exemplo, é justificada pelo aumento de seu “déficit”. A Trabalhista vai pelo mesmo caminho de negação de direitos e condenação das despesas. Imagine-se agora – quando descobrimos que a solução para a menor qualidade das escolas públicas passa pela oferta da jornada integral – se algum político ou burocrata se negar a adotar o tempo integral porque as refeições passarão de uma para três, aumentando o déficit da educação? Com a palavra nossas queridas técnicas em alimentação escolar e suas colegas nutricionistas – antes que alguém proponha a Reforma da Gratuidade do Ensino porque o salário dos educadores e o déficit da educação também vão aumentar!