“Quando as aulas voltarem…” | Um texto para lidar com nossas angústias


“São várias as mães, eu entre elas, conhecidas e amigas, assoberbadas com o isolamento social tendo que dar conta das compras, comida dentro de casa, demandas do trabalho remoto, lidar com as notícias diárias de infectados e mortos e, ser tutora EAD dos filhos. Ninguém estava preparado para a educação domiciliar: nem escolas, nem crianças, nem famílias.”

Um texto publicado no último sábado (28) pela professora Tatiana Lebedeff no Facebook fez seu nome correr o país.

Com sensibilidade e empatia, a doutora em Psicologia e professora da Universidade Federal de Pelotas traduziu o sentimento de inúmeras mães que, com a pandemia de coronavírus, tornaram-se tutoras EAD da noite para o dia.

Dialogou, ainda, com a dificuldade das comunidades escolares em lidar com as demandas do período e a angústia do isolamento, compartilhada por todos.

“As escolas não são mágicas para tirarem das cartolas aulas e atividades EAD para todos os anos em todas as disciplinas. As mães não são professoras experts em todos os conteúdos de todas as disciplinas. As crianças, também estressadas pelo isolamento, não possuem experiência com aulas EAD e não compreendem que estar em casa não significa férias”, argumenta no post.

No Facebook a publicação já alcançou mais de 5 mil compartilhamentos. Mas a circulação em outras redes, como grupos de Whatsapp, é incalculável.

“Meu irmão mora em Singapura e minha cunhada recebeu o texto no grupo de pais da escolinha. Não esperava tanta repercussão”, conta a educadora, que ainda não parou de receber mensagens de pessoas que se identificaram com a postagem.

“Escrevi num estado de profunda angústia. Vi meu filho brincando de gritar com o cachorro do vizinho e, na mesma noite, algumas conhecidas estavam questionando a recuperação de conteúdos, ligando para as escolas para perguntar como seriam as aulas pós-isolamento. Naquele momento eu quis chorar, porque achei que estava tudo errado. O menino sem poder sair de casa e a preocupação era com as locuções adverbiais”, reflete Tatiana.

Tatiana, mãe da Isadora (19) e Gabriel (10), divide-se entre cuidar da casa, trabalhar no home office, ajudar o filho nas aulas a distância, fazer almoço e janta e dar atenção para a filha.

“Antes do isolamento social eu tinha uma funcionária todas as manhãs que organizava a casa para mim e, meu ex-marido ficava alguns dias da semana com Gabriel. Agora é tudo comigo. Três semanas atrás eu estava na USP em banca de Tese de Doutorado de 489 páginas, hoje de manhã eu estava desinfetando cebolas, laranjas e mamão com álcool gel”, conta.

O texto, que nasceu como desabafo, termina propondo uma profunda reflexão sobre o papel da escola e a transformação psicológica catalizada pelo isolamento. Para ela, o período tem tornado mais clara a sobrecarga de informações e tarefas às quais estamos submetidos.

“O que vivíamos não pode ser considerado normal, nem vai ser normal o que vamos viver depois dessa pandemia. Se essa parada não fizer com que a gente sente e pense o que realmente importa em nossas vidas, talvez na próxima parada seja tarde demais”, pondera.

Leia a íntegra do texto de Tatiana abaixo:

Quando as aulas voltarem eu não quero que tenha “aula”

Tenho recebido e compartilhado vários “memes” que falam da incompatibilidade do homeoffice com o homeschooling. São várias as mães, eu entre elas, conhecidas e amigas, assoberbadas com o isolamento social tendo que dar conta das compras, comida dentro de casa, demandas do trabalho remoto, lidar com as notícias diárias de infectados e mortos e, ser tutora EAD dos filhos. Ninguém estava preparado para a educação domiciliar: nem escolas, nem crianças, nem famílias. As escolas não são mágicas para tirarem das cartolas aulas e atividades EAD para todos os anos em todas as disciplinas. As mães não são professoras experts em todos os conteúdos de todas as disciplinas. As crianças, também estressadas pelo isolamento, não possuem experiência com aulas EAD e não compreendem que estar em casa não significa férias. Óbvio que tem muita gente irritada, ansiosa, frustrada com a sua “incompetência pedagógica” questionando como os conteúdos serão recuperados, discutindo a necessidade de turnos inversos para dar conta do que está “atrasado”, enviando e-mails e telefonemas para as escolas perguntando quais serão as estratégias de “recuperação”. A instituição onde trabalho prorrogou por mais duas semanas o isolamento. As crianças voltarão para as escolas dia 5? Dúvida no ar, talvez tenhamos mais tempo de crianças em casa. Ontem, quando li um monte de mensagens angustiadas sobre as aulas EAD e o que e como deve ser recuperado fiquei pensando o que é “atrasado” no currículo de crianças que estão fazendo 10 anos, que estão no 4º ano do Ensino Fundamental. O que é conteúdo “atrasado” em qualquer segmento escolar? O que eu espero, quando as crianças voltem para as escolas, é que tenha uma semana “sem aula”, que elas fiquem correndo e gritando nos pátios como os hamsters do capiroto até perderem a voz! Que as escolas mandem na agenda o seguinte bilhete: venham com roupa que possa ser rasgada, para que elas possam ralar os joelhos e cotovelos de tanto rolar na terra; que comam tatu-bolinha; que tomem banho de mangueira e muito, muito sol; que façam penteados malucos; que dancem muito e joguem bola até caírem exaustas no chão. Depois disso, gostaria que as escolas refletissem com as crianças o que significou essa experiência para elas, para as famílias. Que falem sobre resiliência, enfrentamento de frustrações, sobre solidariedade. Temos que levar alguma lição do que estamos vivendo, temos que fortalecer nossas relações como famílias e como sociedade. As escolas PRECISAM falar sobre a necropolítica, que resolve quem vale à pena viver ou morrer. Não quero ver crianças confinadas, novamente, nas escolas em turno inverso para “recuperar” locuções adverbiais. Se é que elas terão que ficar no turno inverso, é para que aprendam a ser mais humanas, menos egoístas, mais sensíveis. Em vinte e poucos anos serão os amiguinhos ranhentos do meu filho que poderão estar “selecionando” os com mais de 80 anos para serem mortos, eu estarei na fila. Uma psicóloga conhecida comentou que ninguém imagina o impacto que essa pandemia terá, em longo prazo, nas subjetividades das crianças e jovens que a estão enfrentando. Que a gente possa, agora, pensar nesses efeitos e repensar o papel da escola na volta às aulas… nesse momento, acredito, é mais importante preocupar-se com a saúde mental das crianças e jovens do que com o conteúdo a ser “vencido”. Abraços virtuais e que sigamos nos apoiando mutuamente, Tatiana.

 

 

 

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