Contrariando a legislação, ignorando a agricultura familiar e desrespeitando recomendações internacionais, o governo Eduardo Leite gastou R$ 23,9 milhões com cestas básicas de um único fornecedor.
São alimentos destinados a cumprir um papel fundamental: ajudar as famílias de estudantes da rede estadual que estão sem a merenda escolar durante o isolamento.
Mas a forma de aquisição e a falta de diálogo com o setor responsável por quase 30% do PIB gaúcho, a agricultura familiar, chocou entidades representativas dos pequenos e médios produtores rurais.
“Foi uma compra muito rápida, sem licitação, se aproveitando do cenário de pandemia. O governo simplesmente fez a opção de gastar tudo em um atacadão de Gravataí”, conta Juliano Ferreira de Sá, presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do RS (Consea).
A aquisição desrespeitou uma série de recomendações e normativas legais. O Estado utilizou fundos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que determina a destinação de, no mínimo, 30% dos recursos à compra de alimentos da agricultura familiar.
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A intenção do fundo é movimentar a economia local, descentralizar os recursos em um grande número de produtores(as) e assegurar a qualidade dos alimentos. O exato oposto da política executada pelo governo Leite.
“Temos mais de cem cooperativas com capacidade de produção e prontas para o pleno atendimento. Os agricultores perderam a produção com a seca, o mercado com o coronavírus e agora também perdem importantes recursos”, lamenta Gervásio Plusinski, diretor técnico da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes-RS).
Cinco quilos de açúcar para dois de feijão
Também chama atenção a baixa qualidade dos produtos adquiridos. Na relação de itens da cesta, há cinco quilos de açúcar e dois de feijão, bem como alimentos ultraprocessados e de valor nutricional questionável.
“Existe um trabalho forte no ambiente escolar para evitar a obesidade infantil, todo um acúmulo de discussão e avanços que não foram considerados”, observa a nutricionista e vice-presidente do Consea, Lisete Griebler. “Eu sei que é uma situação de emergência, mas não podemos ofertar alimentos ruins. Mais do que nunca precisamos contribuir com a imunidade das pessoas”.
Leudimar Ferrari, da Cooperativa Central dos Assentamentos (Coceargs), avalia que falta entendimento por parte do governo estadual sobre o setor. “Produzimos arroz, carne, leite, massa. Não há produto que não temos. Há logística e condições de armazenamento. Por isso, não faz sentido fazer uma compra centralizada com esse montante de dinheiro. Como fica a produção que as famílias iam entregar às escolas?”, preocupa-se.
Priorizar o comércio local é, ainda, uma orientação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) durante a pandemia. “Pesquisadores do mundo todo destacam que isso pode ser uma estratégia para evitar o desabastecimento de alimentos e um empobrecimento ainda maior da população. Aqui no estado o instrumento legal foi criado em 2012, no governo Tarso. A Lei existe, só precisa executar”, observa Sá.
O Consae oficiou a Seduc questionando o procedimento. No último dia 30, Unicafes, Coceargs e Fetraf entregaram uma representação ao Ministério Público solicitando a investigação do ocorrido.
Seduc admite precipitação
Em audiência pública realizada nesta sexta-feira (15), o diretor administrativo da Seduc, Joel Rech, admitiu que o governo pode ter se precipitado. “Talvez a gente tenha se apressado ao montar este processo, mas tenham a certeza de que foi na melhor das intenções, respeitamos a agricultura familiar”, afirmou.
De acordo com o diretor, o governo realizou um levantamento em 2019 para conhecer melhor a realidade da agricultura familiar nas Coordenadorias da Educação. Em alguma o índice de aquisição chega a 50%. “Em outras é muito baixo. Estamos trabalhando para aumentar esse percentual”, conta.
Na audiência digital, convocada pelas comissões de Educação e Segurança e Serviços Públicos da Assembleia Legislativa, deputados e entidades se revezaram nas críticas à compra.
O deputado Edegar Pretto (PT) lembrou que o Rio Grande do Sul atravessa uma seca história, com quase meio ano de duração. “E agora perdemos essa oportunidade ímpar de colocar R$ 23 milhões na agricultura familiar. Estamos falando de uma legislação de 2019. Que critérios foram usados para não obedecer a lei?”
Edson Brum (MDB) frisou que parte dos produtos não tem origem no estado. “Um diretor de escola me informou que muitos produtos adquiridos sequer foram fabricados no Rio Grande do Sul. Estamos fazendo campanha para retomar a questão financeira e aí o governo compra produtos de fora do Estado? Fica muito ruim o discurso ser um e a prática outra”, contestou.
Os deputados Zé Nunes, Sofia Cavedon e Jeferson Fernandes também participaram da reunião.
Após os erros da primeira aquisição, o governo já anunciou que as próximas aquisições serão realizadas de forma descentralizada, respeitando a legislação. Mas Juliano Sá reforça: “disseram que vão resolver, mas não sabemos quanto, nem quando e nem como ocorrerá.”
“A Seduc e o governo cometeram uma falha muito grave ao não levar e consideração a possibilidade de fornecermos os alimentos na chamada pública. Temos mais de 50 cooperativas que fazem esse trabalho. Então, não há justificativa. Queremos ter a oportunidade de apresentar os nossos produtos. Temos produção para comercializar 100% da agricultura familiar”, destaca o coordenador geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul (Fetraf), Rui Valença.