Lei de Cotas: política que permite acesso de pobres e negros nas universidades está ameaçada


Em 2022,  a Lei de Cotas (Lei Federal 12.711/2012) – que destina 50% das vagas em universidades e institutos federais para pessoas pardas, pretas, indígenas, com deficiências e estudantes de escolas públicas – completa dez anos.

Devido ao seu artigo 7, a Lei requer a sua revisão, e as disputas na Câmara, tanto para defendê-la como para revogá-la, já iniciaram.

Desde a sua implantação, as cotas mudaram a cara das universidades públicas no Brasil e os resultados dão evidências claras da sua importância e da necessidade de sua renovação. Milhares de jovens, que antes não viam a possibilidade de cursar o ensino superior, passaram a reivindicar e ocupar espaços que antes eram privilégio de uma pequena parcela da população.

De acordo com a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE, o número de matrículas de estudantes pretos e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil ultrapassou pela primeira vez o de brancos em 2018, totalizando 50,3% dos estudantes do ensino superior da rede pública.

Apesar de maioria, esse grupo permanecia sub-representado já que correspondia a 55,8% da população brasileira.

Com a Lei de Cotas, a mudança no perfil das universidades brasileiras também fica evidente com dados de um levantamento da Agência Senado, realizado nas três maiores universidades brasileiras.

Fonte: Agência Senado

Segundo a pesquisa, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), estandarte do sistema de cotas, foi a pioneira na adoção da política afirmativa no país. Desde o vestibular de 2003, parte das vagas é destinada a alunos(as) autodeclarados negros e pardos e estudantes da rede pública de ensino, com base na situação socioeconômica dos candidatos.

Da Uerj, 3.056 estudantes ingressaram via sistema de cotas no primeiro vestibular. Em 2020, a universidade contava com 7.553 alunos(as) cotistas vinculados.

Precursora entre as universidades federais, a UnB aprovou a política afirmativa em 2003, mas a regra começou a valer no ano seguinte. Atualmente, o total de vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas nos processos seletivos da instituição, considerada a adoção de todas as políticas vigentes, corresponde a um terço do total (33,5%). Em 2012, quando a Lei das Cotas foi sancionada, 10.680 estudantes pretos e pardos — de um total de 41.767 — estudavam na instituição. Hoje, somam 15.574 estudantes de um total de 42.929.

Para o 1° vice-presidente do CPERS, Alex Saratt, a Lei de Cotas é essencial para o desenvolvimento, não só pessoal, mas da nação.

“É preciso pensar a política de cotas como uma política de um contexto maior, de reparação histórica e de ações afirmativas. O debate tem sido muitas vezes pautado por aqueles setores da sociedade que são conservadores e reacionários e se beneficiam da exclusão social e econômica da grande maioria da população. Cotas étnico-raciais e cotas socioeconômicas são fundamentais para que a educação seja de fato democratizada e o povo brasileiro tenha acesso às instâncias superiores de educação, podendo com isso contribuir para o desenvolvimento nacional e para o próprio sucesso pessoal”.

Governo Bolsonaro quer acabar com o ensino público no Brasil 

Em entrevista ao Portal Vermelho, a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Brelaz, deu um duro recado às forças conservadoras no parlamento que defendem o fim da política de cotas nas universidades públicas: “Nós não aceitaremos o discurso de que essa política acabou, e nós estamos muito bem mobilizados junto com o movimento negro para qualquer tentativa de setores conservadores colocarem passos para trás nessa lei”.

Ao comemorar o sucesso dessa política afirmativa e propor seu aperfeiçoamento, Bruna aponta para os problemas atuais de sucateamento das universidades promovida pelo governo Bolsonaro (PL).

“Só em 2022, o orçamento das universidades sofreu cortes de R$ 1 bilhão. Como esse estudante cotista que entra hoje na universidade, que precisou fazer a transição pós-pandemia vai encontrar essa universidade com o orçamento totalmente desatrelado da realidade?”, questionou.

O estudante e presidente da UEE RS, Airton Silva, ressalta que a Lei de Cotas, mais do que democratizar o acesso à universidade, surgiu para reparar uma dívida histórica do Brasil com a população negra. 

“A lei de cotas foi uma conquista do movimento estudantil e do movimento negro, pela democratização do acesso à universidade pública para uma parcela da população que historicamente teve os seus direitos negados. Essa Lei é fruto da construção do nosso país, que tem um racismo estrutural atravessado, fruto de um período escravocrata, muito forte ainda aqui. Nós temos mais tempo de pessoas negras escravizadas do que livres no Brasil, as cotas vêm para reparar esses danos da construção do nosso país”, enfatiza Airton. 

Silva destaca que, para além da manutenção da Lei, há necessidade de revisão de sua estrutura para garantir a efetiva formação dos cotistas. 

“Para nós estudantes, para nós que construímos o movimento estudantil, esse é um período para comemorar esse avanço, mas também de apontar para o futuro, porque para nós a Lei de Cotas precisa ter metas mais objetivas, que garantam mais que o acesso, mas também a permanência”.

Ele ainda completa: “Não basta acessar, nós queremos que a população, que os estudantes cotistas, consigam sair com seu diploma na mão. Então esse o nosso desafio, conseguir ter uma lei de cotas que aponte um caminho de avanço, com objetivos e metas mais claros, mais nítidos e que tenham um plano de assistência estudantil casado com ela”.

Cotas raciais até durarem as desigualdades

A população negra isoladamente representa mais que 56% do total da população brasileira e, no entanto, tem baixíssima proporcionalidade na maioria dos cargos e funções de poder e prestígio na sociedade.

A Lei de Cotas carrega, em uma das suas muitas missões, a tentativa de equilibrar na área educacional o racismo estrutural e as desigualdades existentes há séculos. 

O 2º vice-presidente do CPERS e diretor do Coletivo de Combate ao Racismo do Sindicato, Edson Garcia, ressalta que acabar com a Lei de Cotas é retroceder nas políticas de inclusão no Brasil. 

“A Lei de Cotas foi uma das políticas mais acertadas por parte do governo, que não trata somente de uma medida inicial, mas de reparação. A possibilidade de tornar iguais às oportunidades de acesso, já que o ponto de partida de cada um e de cada uma é diferente, mudaram a cara do ensino brasileiro. Não ter essa lei vigente seria um retrocesso naquilo que mais importante tivemos nesse período em termos de política pública para a educação”.

Manter a política de cotas em uma sociedade em que a hecatombe da desigualdade favorece o crescimento de uma fortuna familiar de US$2 bilhões, em 2020, para US$13 bilhões em 2021 (valor médio da fortuna de empresários da Saúde saltou 134% em Saúde) é reconhecer que as linhas de partida e permanência não são as mesmas.

O CPERS, através do seu Coletivo de Combate ao Racismo, defende a continuidade e a ampliação dessa política. Não podemos permitir um retrocesso com a possibilidade do fim das cotas. 

O que o Brasil precisa é a criação de políticas públicas que ampliem o acesso e a permanência de estudantes das camadas mais discriminadas da população nas universidades, e não a retirada desse direito.

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