‘Aumento da repressão é resultado de uma sociedade que não refletiu sobre arbítrios da ditadura’


O que é criminalização dos movimentos sociais? Como ela ocorre na sociedade? Em que contexto isso está inserido? Em entrevista ao Sul21, Carlos César D’Elia, conhecido como Vermelho, procurador do Estado e membro do Comitê Estadual Contra a Tortura, trata de contextualizar o momento de crescentes denúncias de violência policial e detenções, pela Brigada Militar, de integrantes de movimentos sociais durante protestos na Capital e no Estado.

Vermelho foi um dos relatores do documento elaborado pelo Comitê que constatou a ocorrência de tortura por policiais contra estudantes secundaristas na ocupação da Secretaria da Fazenda (Sefaz), em 15 de junho de 2016. Também foi testemunha no julgamento do policial militar Alexandre Curto dos Santos, condenado nesta quinta-feira (21) a 12 anos de prisão pelo assassinato, com um tiro nas costas, do agricultor sem terra Elton Brum, em 21 de agosto de 2009. Pelo fato de ainda ter a possibilidade de recurso da decisão, ele não pode falar sobre o último caso, especificamente, mas destaca que as duas questões, estão inseridas em um contexto de repressão e criminalização dos movimentos sociais.

Por trabalhar diretamente com denúncias de tortura, ele destaca que muitas das práticas adotadas pelo regime militar sobreviveram no período democrático, mas reconhece que há, pelo menos, uma impressão de recrudescimento da violência institucional voltada contra os setores dominados da sociedade.

“A questão da aceitação de processos repressivos que atropelam direitos, especialmente sobre o pilar do moralismo, passa por falhas profundas no Brasil. Nós não tivemos, por exemplo, uma justiça de transição, que problematizasse profundamente todos os arbítrios que foram praticados, pelo menos, pela ditadura civil-militar de 1964. Qual é a consequência disso? Os processos de repressão, adentrando inclusive no campo da tortura, nos tratamentos desumanos e degradantes, acabam sendo naturalizados numa sociedade que não fez a reflexão devida do significado disso”, diz Vermelho.

Confira, a seguir, a íntegra da entrevista.

Sul21 – O senhor avalia que há um contexto de criminalização dos movimentos sociais? Em caso positivo, quais são os elementos de repressão que levam a isso?

Vermelho: Primeiro, tem como pano de fundo a questão do Direito Penal como solução e como instrumento. A gente percebe uma hipertrofia, uma tendência muito grande, um apelo muito sério à ampliação do espaço do Direito Penal, seja pela ampliação de tipos penais, seja pelo aumento quantitativo das penas. A gente vê um aumento brutal da população carcerária, ou seja, os critérios, inclusive processuais, todos apontando muito para isso. O Brasil hoje é a segunda ou terceira maior população carcerária do mundo. A gente está em um contexto no qual a legitimação do Direito Penal é muito procurada e aí entra uma primeira contradição, porque, no debate dos Direitos Humanos, ao mesmo tempo que existe uma necessidade de problematizar isso, e a criminologia crítica, os fundamentos dos Direitos Humanos, especialmente dos direitos civis e políticos, nos impõe essa problematização do Direito Penal, mas curiosamente vários movimentos sinalizam um aceno ao Direito Penal como a solução. É o caso, por exemplo, da criminalização das condutas de ódio, que envolvem a questão do racismo, da orientação sexual, dentre outras. Nós buscamos esse mesmo Direito Penal como critério de Justiça como estávamos fazendo ontem [a entrevista foi realizada na última sexta-feira] em relação ao assassinato do Elton Brum. Vejam então quão problemática é essa discussão do Direito Penal. Quando a gente fala de criminalização, não tem como a gente não atentar minimamente para esse pano de fundo, que é uma discussão muito complexa. O problema que nós vemos é que existe uma tensão e contradição, seja por quem ataca ou quem milita por Direitos Humanos.

Sul21 – Nas redes sociais, inclusive, há comportamentos bastante semelhantes, com linchamentos virtuais. 

Vermelho: Na questão de gênero, uma grande bandeira – ou pelo menos discussão – no movimento feminista hegemoniza a ideia do feminicídio. Claro que, em qualquer debate, nós não vamos encontrar uma opinião única e monolítica, falo em termos do que está hegemonizando esse debate. Veja, essa questão do que é o Direito Penal não pode ser desconsiderada. Nós temos então desde que aqueles que apontam a necessidade de ampliação do Direito Penal…

Sul21 – Uma perspectiva de aumento da punição, não é?

Vermelho: Com punição e tudo que se relaciona do Direito Penal, incluindo o processo, que não pode ser desconsiderado. Há setores que problematizam o Direito Penal dentro de posições mais radicalizadas, no bom sentido, de ir a fundo na questão, apontando para as posições minimalistas e abolicionistas. Eu, por exemplo, tenho uma simpatia pelo minimalismo, mas tem que se ter uma responsabilidade quando se toma uma posição dessas. Que alternativas a gente tem ao Direito Penal nesse momento? Ao mesmo tempo que nós problematizamos, nós temos que responder qual é a alternativa.

Sul21 – O que são essas posições minimalista e abolicionista do Direito Penal?

Vermelho: Sem entrar num debate teórico de fundo, é a discussão daqueles que entendem que o Direito Penal tem que ser substituído por alguma outra coisa, porque efetivamente todos os seus pressupostos não são atingidos, portanto não é uma perspectiva que resolva o que ele se propõe a resolver. Problematiza também a que serve, a que vem e a que atende o Direito Penal. Minimalista no sentido de, ao contrário da perspectiva de expansão, ir diminuindo, tanto quanto possível, o campo de atuação do DP.

‘Direitos surgem a partir de lutas’ | Foto: Maia Rubim/Sul21

Sul21 – O Direito Penal centrado em uma perspectiva de julgamento e punição?

Vermelho: Não só isso, mas também de discutir o que é crime, o que não é, junto com que tipo de pena, como se cumpre essa pena. Também não dá para se esquecer do processo penal. Veja que há muitos discursos de que temos muitos recursos, de que existem muitas alternativas que postergam o tempo de tramitação de um processo até chegar a essa conclusão. Isso também está no tensionamento desse discurso de urgência, onde a partir da constatação de um fato, que é colocado como um crime, tenha que imediatamente já estar correspondendo um encarceramento. Veja, então, o que temos de presos provisórios, gente aguardando uma condenação definitiva ou absolvição, o que inclusive é um dos motivos do estrangulamento do sistema, isso tudo sem falar nas condições carcerárias, que aí entra na parte final de execução penal.

Sul21 – E como a questão da criminalização dos movimentos sociais está enquadrada nesse debate?

Vermelho: Partindo desses pressupostos, tem algumas questões importantes a se considerar. Os movimentos sociais existem na perspectiva de reivindicar ou defender direitos. Temos movimentos sociais clássicos, como sindicatos e organizações de trabalhadores, até os novos movimentos sociais, que vão emergindo num processo de complexificação social e que problematizam muitos dos nossos direitos. Direitos sociais clássicos existem também porque foram frutos de reivindicações. O que eu estou querendo dizer com isso? Direitos surgem a partir de lutas. Quando eu falo lutas, estou falando de movimentos sociais, nas suas mais diversas naturezas. O que nós podemos observar? Há um direcionamento do Direito Penal em relação aos movimentos sociais na mesma medida em que os movimentos sociais emergem como consequência de ataques, portanto de defesa ou na busca de novos direitos. Então, essa relação dialética se coloca também como algo que a gente precisa ter atenção. Nos novos movimentos sociais, em larga medida, me parece que há um deslocamento cada vez maior em direção ao debate sobre os Direitos Humanos, ou seja, porque existe uma emergência de que as relações sociais estão permeadas por uma série de outros aspectos que por muito tempo foram invisibilizados, reprimidos ou desconsiderados.

Vamos citar novamente a questão do movimento feminista, em que há muitos anos vai emergindo novas dimensões do que significa a repressão em relação às mulheres, portanto vão emergir novas necessidades, novas reivindicações. E a questão de orientação sexual, de raça e etnia, de cultura. Veja que tudo vai se problematizando num momento em que nós vivemos hoje, onde tudo isso vai fomentando quase que um caldeirão efervescente. São várias as razões pelas quais a gente verifica isso. Se existe uma questão de criminalizar movimentos, é porque também há necessidade de movimentos sociais.

Isso não acontece no Brasil de uma forma isolada. Vamos verificar que está acontecendo por toda a América Latina e na Europa. Portanto, é uma situação mundial que tem a ver em termos de uma correlação de forças a partir de um avanço brutal de uma lógica neoliberal, no seio do qual essas tensões todas decorrem de tudo que acontece. Vemos emergir, inclusive, posições que vão até o limite do fascismo.

Sul21 – Quais são os elementos que legitimam a repressão aos movimentos sociais?

Vermelho: São vários. Evidentemente que tem que passar por uma “legitimação”, esse processo de avanço da repressão dos movimentos. Pelo que passa? O discurso mais recorrente é de desqualificação da luta por esses direitos e, mais ainda, por defesa desses direitos. Veja que hoje nós não só estamos com uma dificuldade enorme de alcançar a concretização de novos espaços de direitos, mas nós estamos num momento de retrocessos. Essa legitimação passa por um convencimento, que passa por esse caldo de cultura onde os discursos de ódio são fomentados, passa por processos ideológicos de conformação e de construção ou condicionamento da opinião pública. E aí o papel da imprensa é fundamental. Por isso que espaços que nós chamamos alternativos cumprem hoje um papel estratégico, porque são um dos instrumentos de contraposição aos discursos que estão hegemonizando a sociedade hoje, especialmente dos grandes veículos de comunicação de massa. Então, esse processo todo passa por essa legitimação.

‘Nós estamos reféns de uma perplexidade que nos é imposta, diz Carlos D’Elia. Foto: Maia Rubim/Sul21

Sul21 – Chegamos a um momento em que já não é necessário mais criticar as formas de manifestação porque já está naturalizado em grande parte da sociedade que tudo que foge à ‘normalidade’ é reprovável e, portanto, tem que ser reprimido?

Vermelho: Sim, isso é consequência de todo um caldo de cultura que passa, dentre outras coisas, pela mídia. Mas não é só isso, as relações sociais estão muito permeadas por isso. Existem elementos históricos que a gente não pode desconsiderar. Por exemplo, a questão da aceitação de processos repressivos que atropelam direitos, especialmente sobre o pilar do moralismo, passa por falhas profundas no Brasil. Nós não tivemos, por exemplo, uma justiça de transição, que problematizasse profundamente todos os arbítrios que foram praticados, pelo menos, pela ditadura civil-militar de 1964. Qual é a consequência disso? Os processos de repressão, adentrando inclusive no campo da tortura, nos tratamentos desumanos e degradantes, acabam sendo naturalizados numa sociedade que não fez a reflexão devida do significado disso. Não é por menos que, com certa naturalidade e entusiasmo de alguns setores, de forma preocupantemente crescente, nós vemos parte das Forças Armadas, especialmente do Exército, sinalizando com a possibilidade de uma intervenção. O Brasil é inclusive o único país da América Latina onde o Supremo Tribunal Federal validou a Lei da Anistia, beneficiando torturadores.

Sul21 – Essa hegemonia busca um pretenso consenso onde toda divergência não é bem vista?

Vermelho: Eu preservo muito essa questão do consenso. Na verdade, há uma dominação profunda da capacidade e das possibilidades de reflexão. Inclusive, o direito à informação e à expressão estão sendo profundamente atacados também como uma forma de condicionamento e de limitação da nossa capacidade de visão e avaliação crítica do que está acontecendo. Não é por acaso que a cultura, nessas situações, é uma das mais violentamente atacadas. Esse avanço brutal que estamos sentindo em relação à cultura é uma forma de começar a instrumentalizar, limitar essa concepção que está se impondo hegemonicamente, que está muito longe de ser consenso. Nós estamos reféns de uma perplexidade que nos é imposta. Então, é muito mais grave do que isso. E veja que não é um processo só local, é mundial, assim como os ataques aos direitos sociais, que estão por trás de muitas necessidades de manifestações públicas, de lutas das mais variadas, dentro das quais as ocupações, as manifestações de rua, enfim, todas as estratégias de manifestação de defesa desses direitos, que são direitos humanos. Nós ainda estamos discutindo o que são direitos humanos e ainda, desgraçadamente, o discurso que hegemoniza os espaços que são impostos cotidianamente ainda reproduzem a ideia de direitos humanos como direitos de bandidos, como direitos parciais, onde os próprios direitos são relativizados, quando, na verdade, são conquistas históricas.

Eu digo que não é só aqui porque, se a gente verificar o que está acontecendo com o Estado social na Europa, vamos ver que esse arrasa-quarteirão do sistema financeiro internacional que está sendo imposto é uma realidade. A questão é que, na Europa, nós ainda temos uma visão mais consolidada do Estado social e de democracia. Aqui, nós nunca chegamos a conseguir um Estado social. Nós tivemos, por um período, um projeto profundamente marcado por uma lógica desenvolvimentista, que possibilitou alguns avanços, é verdade, mas não construiu, não consolidou efetivamente uma consciência crítica, uma consciência cidadã. Nós tiramos muita gente da miséria, o que já foi um feito formidável, mas os ricos também ficaram mais ricos, e não criamos consciência crítica do que são direitos, da necessidade de se defender a Constituição, porque os próprios movimentos acabaram de alguma maneira contaminados por um projeto que, em vez de aprofundar a consciência de direitos, consciência cidadã e de necessidade permanente de aprofundamento das lutas, nós tivemos uma desmobilização desses movimentos. A consequência disso é agora a nossa incapacidade de reação.

Sul21 – Recentemente, o Comitê Estadual Contra a Tortura fez um relatório que apontou que foi caracterizada a tortura no tratamento daqueles jovens que protestavam na Secretária da Fazenda em 15 de junho de 2016. Ali, houve casos de policiais abrindo a boca de adolescentes e jogando spray dentro. Em que contexto se enquadra essa ação? Foi uma prática que sobreviveu à ditadura ou faz parte de um contexto de escalada da repressão? 

Vermelho: É importante a gente ter claro que o que aconteceu na Sefaz não é uma coisa isolada, nem nova. Nós podemos considerar que, em algum momento, essas práticas começaram a recrudescer de novo, mas elas nunca deixaram de existir e nunca foram poucas. O que dá essa impressão de que está recrudescendo é que estão aparecendo mais, justamente porque estão, de certa maneira, naturalizadas ou admitidas socialmente determinadas práticas a partir de pressupostos da criminalização. Ou seja, criminoso tem que tratar com violência. No momento que tu é criminoso, esse tratamento é merecido. No momento que tu diz que movimento social é crime, tu está então legitimando um tratamento que é considerado admissível ou muitas vezes até indicado para essa realidade. A grande questão é que a violência institucional começa nessa País desde o primeiro momento que os europeus colocam o pé aqui, com o genocídio dos povos indígenas. A violência sempre se consumou com relação aos setores dominados, que não detêm o poder político e econômico até hoje. Aí, de novo, entra raça e etnia, orientação sexual, a questão das mulheres, todo o tipo de situação que se afaste ou não esteja dentro de um contexto de poder. Na Sefaz, por exemplo, eu reencontrei práticas e falas muito similares ao que eu já tinha constatado desde o meu primeiro relatório no Comitê [Até hoje, já trabalhou em quatro casos em que foi apontada a ocorrência de tortura cometida pelo Estado]. O Comitê recebe denúncias dessas violências em relação a adolescentes há muito tempo, o problema é que as pessoas têm muito medo de falar sobre isso.

Nessa questão dos movimentos sociais, passa também pela criminalização dos defensores de direitos humanos, passa por uma precarização inclusive dos instrumentos de defesa dos defensores, por exemplo, o programa de proteção à testemunha, programa de proteção a defensores, programa de proteção a adolescentes ameaçados de morte, que são programas que foram consolidados ao longo dos anos e estão completamente precarizados. A Secretaria de Direitos Humanos, que chegou a ser vinculada à Presidência da República, está completamente liquidada. Há duas semanas, o que restava dela foi liquidado. Então, na mesma medida em que avançam ataques a direitos sociais, civis e políticos, mais se precariza qualquer possibilidade de que instrumentos de proteção a defensores e a movimentos sociais tenham viabilidade, e a própria luta política é precarizada.

‘Uma balão de ensaio’, diz Vermelho sobre as recentes declarações de membros das Forças Armadas sobre a volta da Ditadura | Foto: Maia Rubim/Sul21

Sul21 – Temos hoje no Brasil uma pré-candidatura à presidência que prega tudo que a gente falou até agora, de negativa dos direitos humanos e sociais estabelecidos, em segundo lugar nas pesquisas. Ao mesmo tempo, começa a emergir algo que permaneceu subterrâneo desde o fim da ditadura, que são pedidos de intervenção militar, com abordagens explícitas, o que pode ser considerado um fato novo. Onde isso pode parar?

Vermelho: O Bolsonaro não é único e eu fico preocupado quando nós começamos a fechar muito o foco no Bolsonaro. Nós temos que prestar muita atenção a que tipo de projetos políticos estão sendo propostos, que pode ser pelo Bolsonaro ou por qualquer outro que seja mais palatável e muito menos perceptível. O que está sendo imposto no Brasil hoje começa com aquele projetinho despretensiosamente colocado à disposição da sociedade, o Ponte para o Futuro, e que é exatamente o que estava sinalizado como projeto a ser implementado pelo golpe. Então, como as condições políticas foram dadas, é que está se implementando essa desgraça, essa tragédia, que estamos vendo no País, que é muito similar ao que está sendo imposto na América Latina como um todo e de uma maneira muito similar, em alguma medida, na Europa. Se a gente verificar o que está por trás disso, as estratégias, é muito próximo, muito semelhante: ataques a direitos sociais e a perspectivas de direitos sociais. Muito similar ao que aconteceu, mas com peculiaridades de hoje, no golpe civil-militar de 1964, emergem também esses discursos fascistas, discursos que se sustentam em cima de algumas coisas que também não são novas, perspectivas de fundamentalismo religioso, que também traz no seu bojo a discriminação, inclusive, de religiões. Nós estamos, nas relações culturais e sociais, totalmente conflituados. Esse caldo de cultura, considerando de novo que nós não tivemos a devida reflexão sobre o golpe civil e militar, é que está portanto autorizando essa possibilidade, esse aceno dos militares. Para mim, pensando sobre esses vídeos que vazaram, não só a fala do general naquela reuniãozinha maçônica, mas também vídeos de sargento nos mesmos termos, e o que comandante geral do Exército que, em entrevista, disse que ‘já conversamos e não haverá punição’, indica que, no mínimo, isso foi um balão de ensaio. Ou seja, para ver que tipo de receptividade isso tem. Segundo, um recado foi dado, se o judiciário não apontar que determinadas figuras sejam retiradas…Veja a gravidade, quando os militares dizem quem tem que sair do cenário político, já estão inclusive desconsiderando qualquer possibilidade de discussão no plano técnico e processual. Caímos no Direito Penal de novo.

Agora, por outro lado, nós vemos que esse discurso de hipertrofia do Direito Penal e de desconstrução dos direitos civis no campo penal, para facilitar essa lógica penalista, está se dando também em outras frentes. Não faltam juristas apontando uma série de problemas que envolvem a Lava Jato. E veja que a Lava Jato é um dos objetos apontados pela estrutura militar como dignos de serem preservados. Não vamos entrar aqui no que é Lava Jato, porque isso é outro debate, mas o fato é que nós temos, inequivocamente, no bojo da operação, algumas discussões muito delicadas. Nós tivemos uma representação em relação ao Moro sobre alguns malferimentos de princípios constitucionais, no campo do Direito Penal e do processo penal, em que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região diz, com todas as letras, que, em função da excepcionalidade da situação que trata a Lava Jato, determinados princípios constitucionais também têm que ser relativizados. Ou seja, o TRF4 declara e legítima o estado de exceção. Essa é a gravidade da coisa. Quando a gente vê, que o próprio poder judiciário começa a flexibilizar de tal forma a questão do Direito Penal, quando a gente tem um recrudescimento das ações, tem que ver o sistema como um todo. Focamos muito na questão da violência policial na ponta, mas essa é uma parte do sistema.

Sul21 – Não acontece por acaso.

Vermelho: O que eu tenho verificado nessas prisões que sistematicamente estão ocorrendo em manifestações e ocupações? Frequentemente, as pessoas que são detidas são enquadradas em diversos crimes, primeiro para evitar a possibilidade de fiança, ou estabelecer uma fiança muito alta, no sentido de já possibilitar, pelo menos, uma prisão preventiva até que seja avaliado o flagrante. Me parece que essa tentativa de colocar integrantes de movimentos ao menos alguns dias na cadeia já é em si um instrumento de coerção, de punição prévia, e, portanto, uma estratégia de enfraquecimento dos movimentos pela imposição do medo. Imagina o caos que está o sistema prisional nas condições que foram relatadas pelos adultos que estão respondendo ao processo penal da Sefaz.

Sul21 – E quando a gente fala de adulto, falamos na maioria dos casos de estudantes de Ensino Médio de 18 e 19 anos.

Vermelho: Exatamente. Veja que mesmo esse discurso está dentro desse contexto de ampliação do Direito Penal, porque há adultos, adolescentes, e vamos encontrar também a discussão da redução da maioridade penal, vamos encontrar a lei antiterrorismo que começa a ser utilizada. Essa questão do terrorismo é uma estratégia internacional de, em larga medida, começar também a focar nas possibilidades de resistência. Não estou dizendo que não exista terrorismo, o problema é ampliação desse conceito, o que a gente acaba ou não considerando. Por essas e outras, nós temos hoje o caso do Rafael Braga. A criminalização se dá de diversas formas, das mais descaradas até as mais sutis.

Sul21 – Essa necessidade de repressão aos movimentos sociais pode ser utilizada para uma ruptura mais drástica do que a gente entende como democracia hoje?

Vermelho: Pode e, de alguma forma, isso já está ocorrendo. Os últimos acontecimentos são muito sintomáticos em relação a isso. A gente vê, desde os discursos mais tacanhos em termos de sustentação, como, por exemplo, o direito de protesto não pode inviabilizar o direito de ir e vir. Isso é um discurso banal, que, entretanto, na hora que tu tem que criminalizar, tem que apontar problemas para as manifestações e as formas de luta política, até isso vale. Então, nós vivemos um momento muito delicado e nós temos que atentar muito para essa situação. Por outro lado, se a gente diz que o aumento dos movimentos sociais pode acabar sendo um argumento, não pode em absoluto ter como consequência o recuo dos movimentos sociais. Nós temos que aprofundar a capacidade de organização e mobilização, porque é justamente por essa relativa incapacidade de unificar pautas, de ver mais o que nos identifica do que o que nos diferencia, que está redundando numa enorme dificuldade de articulação, como se as nossas diferenças de projetos no campo da esquerda fossem o problema, o que tem possibilitado o avanço do que eu tenho chamado desse arrasa quarteirão, por todas as vias. Cito de novo a posição do TRF4, em que ataques à Constituição são considerados absolutamente normais. Nesse momento, nós temos que lembrar a importância da Constituição, mas não só, temos que lembrar a importância das convenções e tratados de direitos humanos internacionais. E não é por menos que o Bolsonaro alude de, quem sabe, o Brasil contestar esses tratados.

Sul21 – E como se freia esse arrasa quarteirão?

Vermelho: Nós temos que procurar urgentemente e com muito compromisso ver o que nos identifica. Evidentemente existem pautas que podem nos unificar e é em cima delas que nós temos que trabalhar. E nós temos que demonstrar uma capacidade de organização e manifestação apontando sempre que temos que defender a Constituição, os tratados internacionais de Direitos Humanos e os marcos civilizatórios que nós atingimos até aqui.

Sul21 – E de que maneira isso se coloca em uma sociedade que cada vez mais legitima o contrário?

Vermelho: Acho que nós temos que ter um discurso político muito firme, o mais unificado possível, mas tem uma coisa que para mim é importante, e muitos relativizam isso, nós temos que fugir dos discursos de ódio. Não só pela sua substância, mas pela sua forma. Nós estamos numa forma de nos relacionar, de tratamento, de convivermos, que reproduz muito essa dinâmica do enfrentamento, do ódio. Então, nós temos que ter essa capacidade, apesar de todos os ataques que vem sendo desferidos com relação aos direitos mais variados, civis, políticos, econômicos, sociais e ambientais – é muito importante a gente ter clareza da importância dos direitos ambientais -, de adotar uma linguagem que aproxime, que aponte para a construção, para um consenso, que procure muito mais conquistar do que atacar. Nós temos que ter a capacidade, inclusive, de que a defesa desses direitos, que são importantes para os marcos civilizatórios que a gente conseguiu alcançar, mas ainda muito longe do ideal, não nos levem a reações violentas, a uma perspectiva de reforçar a lógica da violência, do ódio.

‘Nós temos que fugir dos discursos de ódio’ | Foto: Maia Rubim/Sul21

Sul21 – É possível adotar essa linguagem quando, do outro lado, o que vem não é nem um objetivo de prevalecer sobre, mas de eliminar a esquerda? Já se defende abertamente a eliminação da esquerda. Como lidar com isso?

Vermelho: Mesmo nessas questões processuais que eu estava falando, quantas vezes não houve manifestações extremamente contraditórias? Quando se atacava determinados aspectos, em termos processuais, em relação ao Lula e acabava-se depois festejando quando coisas exatamente iguais vinham a acontecer a figuras da direita? Nós acabamos, portanto, endossando aquilo que nós criticamos. Não podemos fazer isso. Então, é a mesma coisa, se entendermos que a perspectiva de nós termos o ódio como resposta, onde isso nos leva? Nós temos que ter a capacidade, que é muito mais difícil, é verdade, de sermos firmes. A questão da não violência está longe de ser subserviência, de ser inerte, muito antes pelo contrário, ela exige uma coragem ainda maior de sermos absolutamente firmes e não violentos. Inclusive, nós podemos e devemos ser revolucionários, sem que para isso tenhamos que necessariamente de apelar para a violência. Quando o Boaventura Santos fala em democratizar a revolução e revolucionar a democracia, isso é uma proposta extremamente importante. Eu coloco dentro dessa proposta a perspectiva que revolucionar a democracia e democratizar a revolução é necessariamente nós entendermos que existem outras possibilidades humanas, do argumento, da organização, da firmeza de posição, das lutas, sem necessariamente sermos violentos, senão nós acabamos, na minha avaliação, legitimando. Ou seja, se a direita diz que terrorista não é humano, portanto, a sua dignidade humana permite inclusive a tortura, e um dos pressupostos da lógica da tortura é retirar a dignidade humana de quem é submetido a ela, nós acabamos legitimando esse mesmo discurso na medida que entendemos que é razoável a eliminação de quem quer que seja pela sua posição de direita.

Nós temos que ser muito mais enfáticos numa proposta de radicalizar a democracia e ter a paciência para entender o limite do outro. Então, qual é a alternativa? Buscar o que nos une, pelo menos nesse momento, reafirmar a Constituição, os tratados de direito internacional e um mínimo de patamar civilizatório que se realizou.

Fotos: Maia Rubim

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