Reforma da Previdência omite dados demográficos relevantes


Envelhecimento populacional é citado como justificativa para PEC 287, mas especialistas apontam armadilhas no discurso

Marcada por um inflamado dissenso, a reforma da Previdência, estampada na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 287, tem sido vendida como saída para enfrentar os desafios impostos pelo envelhecimento da população brasileira. Para o governo, o endurecimento das regras de acesso aos benefícios previdenciários repousa sobre a necessidade de manutenção do sistema, que nas próximas décadas estaria fadado à falência.

No entanto, fontes ouvidas pelo Brasil de Fato desmistificam as previsões governistas e tiram das sombras um dos relevantes aspectos invisibilizados pela PEC 287: o número de idosos está aumentando, mas a população em idade ativa – aquela que está apta ao trabalho –, segue em linha ascendente até 2060. Tal constatação faria cair por terra o argumento de que uma bomba-relógio anuncia o declínio da Previdência pública.

A afirmativa se baseia em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A despeito do aumento do número de pessoas com mais de 65 anos – que deve chegar a um terço da população em 2060 –, o IBGE projeta um percentual de 60,2% do total para a população em idade ativa nessa mesma década. A quantidade é maior que a verificada em 1980, quando o Instituto identificou que 57,6% do contingente populacional pertenciam a esse grupo.

A chamada “idade ativa” compreende a faixa dos 15 aos 65 anos e se refere às pessoas que se encontram à disposição para contribuir com a produção de riquezas para o país, mesmo que não estejam atuando no mercado de trabalho.

O fato de o Brasil ter, para 2060, uma projeção de pessoas em idade ativa maior que a da parcela dependente (crianças e idosos) configura uma situação de “bônus demográfico”, expressão utilizada pelos especialistas para se referir às oportunidades econômicas que surgem a partir desse quadro.

Ao tentar emplacar a PEC 287, o governo superestima os dados referentes à população idosa – que precisa ser sustentada pela Previdência – enquanto ofusca os que tratam do contingente apto a custear o sistema. É o que diz o economista Flávio Tonelli Vaz, um dos autores do último estudo lançado pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) sobre o tema. O especialista aponta ainda que a PEC erra ao comparar ativos e inativos.

“O governo está olhando a pirâmide populacional somente pelo lado de cima. Os números que ele mostra sobre o envelhecimento não são falsos, mas esse não é o dado econômico, pois o que importa é o número de pessoas que podem contribuir. Você pode ter, por exemplo, um número zero de idosos, mas, se a maioria da população é infantil, pouca gente está contribuindo com o sistema”, explica Vaz.

Erro de projeção

A pesquisadora Denise Gentil, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), levanta ainda outro aspecto do panorama demográfico brasileiro que vem sendo omitido no debate público: apesar do aumento do número de idosos, a taxa de crescimento dessa população tende a diminuir no período entre 2021 e 2060.

Com uma mensuração atual de 4% ao ano, a referida taxa deve cair pra menos de 1% em 2060, segundo informa a pesquisadora. Ela aponta que esse comparativo, originário de dados do IBGE, tem sido invisibilizado na propaganda oficial da reforma de Temer.

“Nos estudos do governo, projeta-se um gasto previdenciário explosivo em 2060 e sem considerar isso. Eles estão calculando uma despesa com aposentadoria a taxas crescentes e proporcionais ao PIB [Produto Interno Bruto], quando deveria ser proporcional à taxa de crescimento da população idosa”, explica a pesquisadora.

Para Gentil, tal constatação demonstraria um problema de interpretação demográfica por parte do governo. Mais que isso, colocaria em xeque a credibilidade do discurso oficial porque atinge um ponto nevrálgico da PEC 287, uma vez que reforça o contraponto à ideia de que a Previdência caminha para o colapso.

“O modelo é enviesado para elevar o gasto e mostrar um déficit crescente, ou seja, estamos fazendo uma reforma da Previdência a partir de um modelo falho, completamente inconsistente e cientificamente impróprio para ser utilizado como referência para uma reforma”, afirma a economista.

A análise da pesquisadora tem como substrato um estudo que vem sendo desenvolvido em parceria com outros pesquisadores, tanto nacionais quanto internacionais, para detalhar erros de projeção que têm sido cometidos pelos governos brasileiros em relação à Previdência. “Abrimos a caixa-preta do modelo previdenciário brasileiro, que agora está desnudo”, antecipa Gentil. A pesquisa será divulgada em detalhes no próximo mês.

Regime tripartite

Assim como Denise Gentil, Flávio Tonelli Vaz é um dos críticos do discurso que prega o déficit previdenciário. Ele lembra que o sistema não vive exclusivamente das contribuições feitas por patrões e empregados.

“Num regime tripartite como o nosso – o que é definido pela Constituição Federal –, parte das contribuições vem do Estado, e aqui no Brasil se paga muito pouco”, afirma, acrescentando que a média de participação estatal nos últimos dez anos foi em torno de 16% dos benefícios.

Vaz traça ainda um paralelo com os dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que congrega os países responsáveis pela produção da maior parte das riquezas mundiais. A média de participação estatal na Previdência registrada entre eles foi de cerca de 45% no mesmo período.

“Na verdade, o que o governo brasileiro chama de déficit é a contribuição estatal que ele não quer dar, e o discurso demográfico vem sendo usado como argumento para amparar isso”, aponta Vaz.

Desenvolvimento

A Fundação Anfip, que tem produzido diversos estudos sobre a questão previdenciária, ressalta que a longevidade da população é desejável e não poderia ser apontada como um problema para justificar a PEC 287.

“A questão não é a demografia em si, mas a ausência de um projeto de desenvolvimento para o país. Uma coisa que conta bastante para o financiamento do sistema previdenciário é a dinâmica do mercado de trabalho, que não está funcionando como deveria”, afirma a presidente da entidade, Maria Inez Maranhão.

Ela destaca o número de estabelecimentos que fecharam as portas em 2016. No comércio, por exemplo, mais de 108 mil lojas formais encerraram as atividades no ano passado, deixando 182 mil trabalhadores à deriva. Os dados foram divulgados recentemente pela Confederação Nacional do Comércio.

“Enquanto isso, o Estado brasileiro segue investindo no capital financeiro e gastando dinheiro com os juros da dívida pública, que consomem mais de 40% do orçamento da União. A economia do país está concentrada aí. Esse é o problema”, aponta a presidente, que é auditora fiscal.

Ela critica o caráter austero da PEC 287 e acusa o governo de “inverter as prioridades”. “Se não tem emprego, as lojas estão fechando e a aposentadoria não vai dar mais para nada, para onde estamos indo? Veja que o governo canaliza a maior parte do orçamento pros investidores enquanto quer tirar migalhas da população. Nós não precisamos dessa reforma. Precisamos discutir a economia do país e pensar num projeto de desenvolvimento”, opina Maria Inez.

Previdência X emenda 241/55

Para o deputado federal Pepe Vargas (PT-RS), da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Previdência Social, as questões demográficas que atravessam a PEC 287 não podem ser desvinculadas do debate sobre os investimentos na área da educação. Ele destaca que a qualificação de crianças e jovens que ainda não ingressaram no mercado de trabalho é um dos aspectos que deságuam na arrecadação previdenciária.

“Com investimentos maciços em educação, essa população fica menos sujeita a empregos precários e rotativos, contribuindo para aumentar a produtividade do país, os salários e o PIB. Tudo isso tem um efeito positivo na Previdência, porque ela passa a arrecadar mais”, ressalta o parlamentar, que também foi ex-ministro do Desenvolvimento Agrário e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República na gestão de Dilma Rousseff.

Flávio Tonelli Vaz acrescenta que não só o componente educacional conta nesse cenário da produtividade. “Sem investimentos na economia, teremos um contingente de pessoas com curso superior trabalhando em caixa de supermercado, por exemplo. Se o empresariado não investir em máquinas, equipamentos, etc., não há como o país ser mais produtivo”, explica o especialista, evidenciando que as empresas têm grande responsabilidade nesse panorama porque detêm o capital e os instrumentos de produção.

No entanto, o economista aponta que o empresariado se sustenta também na contrapartida estatal, que neste momento estaria comprometida por conta das restrições impostas pela emenda constitucional 241, aprovada pelo Congresso Nacional no final do ano passado. A medida, que estabelece um teto para as despesas, congelou os investimentos nas áreas sociais num período de 20 anos.

“Os empresários precisam ter certeza de que o Estado vai fazer a sua parte, mas o problema é que a emenda impede isso. Mesmo que o governo quisesse fazer esse investimento na produtividade hoje, não seria possível, porque ele retirou do país a capacidade de utilizar o orçamento de forma anticíclica”, analisa o economista.

Assim, com uma população jovem pouco qualificada profissionalmente e sem investimentos na economia, o país tende a amargar problemas que emperram a engrenagem do sistema previdenciário.

“O governo está caminhando exatamente no sentido inverso. Além de desmanchar o sistema de proteção social, com a PEC 287, ele desmantela o futuro das novas gerações e do país como um todo. Se a política seguir nessa linha, nós vamos perder o bônus demográfico, e aí sim todo esse caos que eles vêm apresentando em relação ao futuro da Previdência vai se transformar em realidade”, finaliza Vargas.

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Fonte: Brasil de Fato

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